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“AMOUR NÃO!”

30.01.2013
Por Ricardo Cota
Podemos nos confortar com o conceito comum de arte como entretenimento, mas não podemos fugir do poder que a arte tem de nos expor aos anjos e demônios que nos cercam.

Recentemente li uma colunista, que pessoalmente desconheço, escrever que após assistir Amour numa sessão de segunda-feira à noite foi surpreendida pelos comentários do marido irritado: “por que ver esse filme agora? Você mal acabou de passar por isso? Por que mais sofrer?” Há uns meses atrás, uma querida amiga, no intervalo do ótimo musical metafísico “Quase Normal”, a caminho do baleiro sussurrou-me: "ainda bem que minha mãe não veio”.

Todos estão certos em suas observações.

Tanto Amour, crônica da finitude, quanto Quase Normal, musical da depressão pós-traumática, são obras de arte maravilhosas, de qualidade estética reconhecíveis, ainda que questionáveis do ponto de vista da melhor crítica. Mas a pergunta é: são obras recomendáveis? E, afinal de contas, o que é uma obra de arte recomendável?

Meus amigos de crítica, que a esta altura já estão cascudos, sabem o quanto é difícil responder a pergunta de pessoas queridas, que na maioria das vezes não vivem a experiência artística cotidianamente como nós, mas questionam legitimamente: “e aí, que filme você recomenda?

E quase sempre recomendamos o filme que destrói o fim de semana do sujeito, que amarga o jantar combinado com os amigos. Lembro de um primo que uma vez chegou para mim e disse: “poxa, aquele filme que você recomendou estragou o meu sábado!”

Para nós, críticos e humanos, a questão envolve o conceito de ética. Respondo a este ser que respeito e admiro o que realmente penso ou respondo com aquele ar de presunção: “acho que você não vai gostar”.

Sempre que me vejo diante deste tipo de resposta me identifico com a indignação. “Quem é você para dizer se eu vou ou não gostar de tal filme?” O problema é que o cidadão retorna ainda mais indignado do cinema : “Pô, que merda de filme você me indicou”.

A ex-mulher de um amigo, figuraça, do tipo opinião eloquente, uma vez me olhou à saída de um filme e gritou: “Cotinha, meu querido, gosto tanto de cinema quanto você. Agora, aqui entre nós, nada de Bergman, NADA DE BERGMAN!!!” Nos abraçamos e rimos numa felicidade alienada que jamais esqueço. Ela odiava Bergman; eu delirava com sua sinceridade. Para ela, minha opinião sobre Bergman e merda eram a mesma coisa. Para mim a opinião dela...

Podemos nos confortar com o conceito comum de arte como entretenimento, como couvert da noite que se abre, mas não podemos fugir do poder que a arte tem de, no pequeno gesto do bailarino, no menor solfejo do intérprete, na filigrana da letra da canção, no enredo do samba que não entendi, no argumento do filme, na cena final da peça, expor-nos aos anjos e demônios que nos cercam. Quem não quer passar por isso, que marque o encontro direto no restaurante.

E seja feliz.

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Outros comentários
    10
  • Valéria
    24.02.2013 às 22:42

    Assisti hoje o filme Amor... Fiquei encantada, com a trilha sonora, algumas vezes angustiante, outras silenciosas. A iluminação que acompanhou o estado de espírito do esposo. A idéia de confinamento do apartamento que se revela muito maior na última cena! E as interpretações, sem palavras suficientes para descrever... Principalmente as sequelas motoras e todo o demais. Amei!!! Mas a amiga que estava comigo saiu péssima, triste, amargurada. Realmente achei a história desalentadora, real. A verdade nua e crua! Bem como Bergman... (Que também amo e ainda não conheço , pessoalmente, alguém que sequer goste)