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EBERT, NA PRIMEIRA PESSOA

05.04.2013
Por Nelson Hoineff
Nelson Hoineff relembra a importância do crítico americano Roger Ebert, falecido recentemente.

Comecei a me interessar por cinema lendo os textos de Antonio Moniz Vianna. Meu pai trazia o Correio da Manhã para casa e eu ia direto para as criticas do Moniz. Eram esses textos o meu foco, não os filmes. Mas o que eu lia era tão bom, que os filmes também deveriam ser.

A dimensão do que o grande crítico brasileiro escrevia no Correio aponta para o que pode haver de grandeza nessa atividade. Não há nada de nobre em dar uma opinião pessoal sobre o trabalho dos outros, nem em fazer piadinhas vulgares sobre uma obra que levou anos para ser construída. Não há nobreza alguma em se apor um mero ícone para qualificar um filme – e chega a ser grosseira a simples exposição de datas, obras anteriores e figuras afins, como se isso configurasse o “saber cinematográfico”. O Google faz isso muito melhor, e não é um grande pensador.

Há raros momentos, por outro lado, em que a digressão sobre um filme pode se transformar numa parceria criativa – e estabelecer uma sólida relação dialética entre o texto e a obra que lhe serve de base. Não conheço um nome que tenha representado isso melhor do que Roger Ebert.

Ebert dava dignidade ao ofício da crítica. Seus textos eram tão bons quanto alguns dos melhores filmes a que eles se referiam. Os filmes que criticava eram quase sempre a referência, o pretexto para a construção de pensamentos sólidos sobre a arte, a indústria e principalmente a vida. Quarenta anos depois de Moniz, ler Ebert tornou-se para mim uma forma de chegar ao cinema através de peças literárias cujas bases estavam nos filmes. Não era preciso concordar com suas conclusões – embora quase sempre isso acontecesse. Mas essa era outra de suas virtudes. Expressar claramente seu pensamento. E deixar claro que, por trás do texto, há alguém que o escreve. Ebert não dizia se um filme era bom ou era ruim. Dizia se ele tinha gostado ou não – e por que.

Falava na primeira pessoa. É difícil imaginar que se possa fazer crítica de cinema sem falar na primeira pessoa. Não é possível dizer que “um ônibus despencou ontem de um viaduto” possa ser comparado a afirmar que “o filme é completamente equivocado”. Alguém pode achar um filme equivocado ou não, mas se o ônibus caiu do viaduto, caiu. O noticiário é objetivo, a crítica não. Quando a crítica torna-se objetiva, ela sim é que está equivocada. O crítico torna-se o juiz supremo da criação alheia sem que ninguém tenha lhe conferido poderes para isso. O poder que ele acha que tem resume-se a alguns centímetros nos jornais, que muitas vezes utiliza com a mesma ética com que um bandido utiliza um revolver.

Ebert fundamentava sua ética no respeito – inclusive porque uma crítica negativa com sua assinatura podia ser devastadora para um filme - e não me lembro de tê-lo visto alguma vez vomitar sua profunda erudição. Era sofisticado e envolvendo como todos os grandes escritores. Tornou, pelo menos para mim, o ato de ler sobre um filme tão prazeroso quanto ver o próprio filme. Duvido muito que repetirei algum dia esse prazer.

Quando vejo agressões descabidas ou, em oposição, a bajulação mais escancarada, sinto uma leve vergonha de me intitular crítico de cinema. Ebert, ao contrário, me enchia de orgulho do ofício que escolhi. Se crítica de cinema era o que ele praticava, creio que um site chamado críticos possa ser relevante para um leitor que almeje algo além do que saber, de qualquer um, o que pode ser bom para fazer no sábado à noite.

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Outros comentários
    355
  • Bianca Zasso
    05.04.2013 às 19:45

    Ótimo texto. Penso o mesmo sobre o Ebert. Um tipo de escritor e crítico em extinção. Vai deixar saudade.