Em vários momentos de "A Caça", o espectador pode se perguntar por que motivo a diretora e o psicólogo da creche, assim como os demais moradores da cidade que acusam Lucas de pedofilia, não conseguem enxergar o que parece tão óbvio: que ele é inocente. Como confiar na opinião de uma criança tão pequena, e achar que criança nunca mente? Na frieza da poltrona do cinema, vendo tudo à distância, é fácil fazer tantos questionamentos ao que seriam "falhas do roteiro". O que talvez alguns não tenham percebido, e aí está um dos principais méritos do filme, é que "A Caça" é justamente um brilhante ensaio crítico sobre a irracionalidade.
Quando misturada com a ignorância, a irracionalidade pode ter consequências explosivas e trágicas em eventos envolvendo supostos atos criminosos. Com a razão deixada de lado, a percepção da realidade se deforma e a justiça sucumbe à ansiedade pela resolução imediata dos problemas. Isso vale para os Estados Unidos, para o Brasil (lembram do caso da Escola Base?) ou para uma cidade do interior da Dinamarca, onde se passa a ação do filme de Thomas Vinterberg.
O cinema já contou inúmeras histórias sobre linchamentos públicos e injustiças cometidas contra personagens inocentes. Também já vimos se tornar clichê o recurso cinematográfico que consiste em deixar o espectador em dúvida sobre a inocência do acusado, plantando no roteiro situações em que ele apresente um comportamento dúbio. Vinterberg escapa dessa armadilha deixando claro desde o início que Lucas é inocente. Com isso, a adesão do espectador ao ponto de vista do personagem passa a ser muito mais direta e envolvente. Podem inclusive surgir questionamentos sobre a sua passividade ao sofrer acusação tão grave – uma reação que talvez fosse outra em uma cultura diferente da nórdica.
Mas a passividade é a marca registrada do personagem, um sujeito solitário e emocionalmente debilitado pela relação distante com o único filho. Exemplo claro disso é o início de seu relacionamento amoroso com uma funcionária da creche. Desde o primeiro beijo até a primeira transa, é sempre ela quem toma a iniciativa. Mas o desempenho do ator Mads Mikkelsen é tão bom que não é difícil perceber o desespero interior de Lucas, que só dá lugar à explosão temperamental quando até a namorada, a única pessoa em quem ele aparentemente poderia confiar, coloca em xeque sua inocência.
Logo o coquetel de irracionalidade com ignorância passa a inebriar a população local, e pouco importa se a polícia não consegue manter Lucas preso por falta de provas: ele já está julgado e condenado informalmente pela simples possibilidade de cometer tamanha atrocidade, e nem os comerciantes locais o querem mais fazendo compras em seus estabelecimentos.
O diretor dinamarquês Thomas Vinterberg foi um dos signatários do manifesto Dogma 95 e se destacou com o brilhante "Festa de Família" (1998), cuja história envolvia a revelação de atos de pedofilia cometidos pelo patriarca. Ao voltar ao tema mais de uma década depois, apesar de todo o sentimento de indignação que ambos os filmes despertam, o diretor agora parece mais otimista. Otimista no sentido de que o filme deixa claro, após a elipse temporal no último ato, que há esperança na força do sentimento de arrependimento e da retomada dos laços de amizade. Por outro lado, não estamos diante de uma mera fábula moral que vai do inferno ao paraíso, e a ambiguidade da cena final coroa com maestria este drama realista, deixando claro que enquanto a ignorância e a paranoia tomarem conta da razão, será impossível vivermos num mundo mais justo.