Artigos


A CRÍTICA AO FILME QUE NÃO VI

16.05.2013
Por Luiz Fernando Gallego
Será que Baz Luhrmann destruiu uma obra literária icônica como "O Grande Gatsby"?

A nova versão de O Grande Gatsby para as telas, dirigida por Baz Luhrmann, foi mal recebida em Cannes e pela crítica americana. Talvez um resultado insatisfatório já fosse previsível pelos antecedentes do diretor que tende a enfatizar a superfície do "espetáculo" (como em seu taquipsíquico Moulin Rouge).

Matéria dos jornais informam que a primeira metade do filme que abriu o Festival de Cannes 2013 - com aplausos apenas protocolares e chucros - é frenética e se choca com os 60 minutos finais que surgem "muito pesados". Ora, o romance, bem mais do que apenas "romântico", é um drama, ou mesmo uma tragédia com a participação da "moira" dos gregos antigos, o destino que pune os mortais que incorrem na desmesura de se pretenderem acima dos outros mortais e próximos aos deuses. E assim é Jay Gatsby.

A história de amor seria seu mote (ou "MacGuffin"), mas o que o livro traz de mais significativo é a mesma tragédia americana que o cinema mostraria, uns 15 anos depois, em Cidadão Kane, de Orson Welles. De modo simplório, poderíamos resumir que a ideia é a de que o dinheiro - ou o capitalismo frenético dos EUA - e o $onho americano não trazem necessariamente a felicidade almejada.

Fazem parte apenas da superfície da trama tanto o luxo em que vive Daisy, a mulher amada à distância por Gatsby, como as festas delirantes que ele promove, sem participar delas, usando-as na verdade como chamariz para ela - que demora a comparecer a uma dessas efemérides de "nouveau riche" emergente. O que importa é o drama (ou tragédia) de um homem que se reinventou para posteriormente se deixar destruir ao acreditar que pode tudo: até mesmo reverter o tempo e pedir à mulher idealizada bem mais do que o que ela poderia dar (e receber).

Também há camadas de leitura onde se encontram crítica social, econômica e cultural a um período que tem seu charme na memória mítica dos "roaring twenties", mas que também tinha seu lado B feioso e triste como no cenário do "vale das cinzas" - que também faz parte essencial da história com outros personagens - essenciais para o plot - de classe social muito inferior. Mas o lado feio da vida e do enredo não deve agradar tanto ao diretor das aparências frenéticas que é Baz Luhrmann. Outra tragédia, portanto. Baz talvez acabe demonstrando, sem o querer, os riscos de se pretender um "grande gatsby", sem cacife para tanto. Ele tentou reagir às críticas apelando para a recepção menos entusiasmada que o livro original também teve quando foi lançado, uma analogia infeliz, pois a questão foi bem outra: em plena euforia maníaca dos anos 1920 pós-I Guerra, Fitzgerald, também sem o saber, estava antecipando o "bode" dos anos 1930 - ou, para ser mais exato, o crack da bolsa de NY em 1929.

O livro foi publicado em 1925 e é considerado o segundo maior romance em língua inglesa do século XX, precedido apenas pelo "Ulisses" de Joyce. Sua construção literária e estrutura são elogiadas como de extrema exatidão, fruto de uma exaustiva elaboração de Scott Fitzgerald, que ainda fazia revisões e depurava a escrita até mesmo quando o livro já estava no prelo para a primeira edição. O equívoco dos contemporâneos que receberam o livro com certa frieza foi também o de privilegiar o lado mais superficial do que Fitzgerald escrevera antes deste romance, escritos que fizeram dele um súbito autor de best-sellers e queridinho da crítica e público de sua época. Mas sua maturidade só chegaria de modo absoluto neste romance exemplar em todos os sentidos.

Nenhum filme deve ser julgado pelo livro que lhe deu origem, mas pelo que é em si mesmo, por sua opção estética, linguagem cinematográfica própria, metas pretendidas e resultados – mais ou menos – alcançados. Mas uma obra literária icônica como esta traz uma cobrança inerente às suas derivações para filmes, peças teatrais, musicais, óperas, ilustrações às quais dá inspiração. Se é verdade que o filme de Luhrmann usa hip hop como ritmo musical em sua trilha sonora, sem que isso seja uma recriação criativa, mas um recurso de superfície voltado para cortejar as plateias contemporâneas, pressupostamente resistentes ao enredo, na verdade bem mais trágico do que romântico, o resultado pode ser bizarro. Esperamos que nem tão ruim como sugerem as primeiras notícias.

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário



Outros comentários
    440
  • Carlos Alberto Mattos
    16.05.2013 às 12:17

    Taí um subgênero de crítica que poderíamos lançar: a crítica especulativa, baseada apenas na expectativa de um filme que ainda não se viu.
  • 441
  • Luiz Fernando Gallego
    16.05.2013 às 12:26

    Bem pensado, Carlos Alberto. E já há precedentes: o Zizek escrachou com "Avatar" na "Cahiers du Cinéma" e mais tarde, em uma entrevista à turma da "Cahiers" revelou que criticou o filme sem o ter visto. O editor disse, surpreso: "Você podia, pelo menos, ter informado isso." O Zizek respondeu: "Mas quem sabe que se eu for ver o filme resolva escrever falando bem?" Bem, eu já informei que ainda não vi esse Gatsby. Se for asisitir e vier a gostar, escreverei a favor. Para a Cahiers, claro.
  • 457
  • Lica Cecato
    22.05.2013 às 15:28

    Sorte de quem não viu! O pior são os dois atores principais se olhando num diálogo íntimo, e o que passa, fora a chatice geral que o filme já causa, é na realidade uma FALTA de ítimidade e de diálogo, falta da construção dos personagens com substância, mesmo que seja a substância da burguesia daquela época pré-1929 nos EEUU, enfim, diálogos para fazer boi dormir, uma coisa piegas e forçada, que, creio, denigra o texto.... Se eu fosse o cadáver do Scott Fitzgerald ia estar mordendo os dentes... Eu não sou crítica de cinema, sou só fã da sétima arte, mas, convenhamos, quando um filme é RUIM não tem jeitinho de dizer mais ou menos. Seu artigo, sim, é bom e ilustrativo. Agora estou esperando alguém que viu o filme e que meta o pau! Assino embaixo!! :-)
  • 588
  • concy pinto
    05.09.2013 às 21:39

    Bom, vi o filme e concordo com o que foi dito. Um livro fabuloso foi tratado como "algo que se pode extrair fórmula comercial com imagens de época". O problema do cinema atual é no fundo nivelar por baixo... por que perder tempo com personagens profundos e bens construídos? Podendo ilustrá-los com modelos de época já basta... chato e mal feito.
    • 589
    • Luiz Fernando Gallego
      05.09.2013 às 22:11

      Você também pode ler a crítica que escrevi depois de ter visto o filme
    • 590
    • Luiz Fernando Gallego
      05.09.2013 às 22:13

      https://criticos.com.br/?p=3832&cat=1