Especiais


FESTIVAL DO RIO 2013: RESENHAS

28.09.2013
Por Críticos.com.br
Confira a atualização diária de resenhas de filmes

Aqui os críticos do site vão publicar suas resenhas. Volte sempre para checar as atualizações diárias. Use Ctrl+F (em PC) ou Command+F (em Mac) para procurar um termo ou título específico na página.

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL

por Rômulo Cyríaco


O cinema resiste. Aqui no Brasil, hoje, ele resiste através de Júlio Bressane, que lança sua educação sentimental e cinematográfica para as novas gerações - ou, para todas as gerações que hoje vivem e que em breve viverão. Educação Sentimental é uma peça que surge como vinda ao mesmo tempo do passado e do futuro, para nos dar fôlego, nos limpar o olhar, nos permitir mais uma vez falar de cinema, de um cinema ao mesmo tempo que já foi e por vir, de um devir-cinema.

Apresentando a sessão, no Cine Odeon, Bressane deixou passar algumas palavras-chave: disse que o filme é inatual, anacrônico, que era preciso paciência e tolerância para assisti-lo... Que se tratava de algo próximo da pintura... Estamos, de fato, diante de um objeto estranho, que deve ser contemplado, circundado, tocado... Desafia as plateias, porque não se dirige a “plateias”, de modo que os indivíduos que a constituiriam precisam devir-corpo para entrar numa relação de sedução mútua com este objeto – que poderia, agora, ser exposto, pendurado num museu, mas num museu que ainda não existe, e que ainda não existiu: não uma instituição asséptica e refrigerada, mas um verdadeiro templo das musas, das divindades da inspiração e da criação artística vital...

O filme é, sim, inatual e anacrônico... Há quem possa dizer que isto é um defeito, que deve-se estar de acordo com as tendências, com as informações, com a educação de seu tempo... Estar moldado, compatível, atualizado... Mas, não: o cinema resiste. Deleuze já nos dizia: no cinema, não se trata de informação, de comunicação. “Não existe degradação da informação: a informação é, em si mesma, a degradação”. O cinema é, ou deveria ser, contra-informação, que se torna, em seguida, ato de resistência. Ao ser inatual, Educação Sentimental desafia os imperativos da atualidade, para pensar, vislumbrar outras vidas, outros cinemas possíveis. “Um pouco de possível, senão eu sufoco”. É nesse sentido que a resistência não é tensão, enrijecimento, evasão: é, ao contrário, liberação contra as tensões, as amarras impostas pelas tendências, pelas atualidades... Resistência alegre, afirmativa. Ao ser anacrônico, o novo filme de Bressane desafia os imperativos do cronômetro, do tempo cronológico, tentando chegar ao futuro pelo passado... Dioniso lança um desafio a Cronos, e ao vencer o desafio, possui o tempo: tempo escasso a um possível indivíduo atual, impaciente crônico, intolerante ao extenso e ao profundo.

Há em Educação Sentimental, em primeiro lugar e notavelmente, o tom teatral e não-naturalista das atuações, do texto e da mise en scène – embebidos em um cenário visual e sonoro de uma natureza calma e transbordante, em afinidade com o cinema: árvores, vento, pássaros. Teatro e cinema se interpenetram, tornam-se um só, alimentam-se um do outro. Este tom, alguns poderiam julgá-lo “artificial”... No entanto, é isso mesmo, mas em outra direção. Bressane faz a maravilhosa artificialidade, teatralidade de uma vida mais verdadeira a ser encontrada, a ser construída.

Do mesmo modo, a erudição extra-vagante de Bressane é, jamais uma primazia da vida interior, mas, a irrupção opulenta de textos no próprio corpo – entre outros, no corpo alegre, potente e voluptuoso de Josie Antello, que apresenta textos gestuais, gestos textuais, que faz palavra e experiência extravasarem uma na outra. Mais e mais conjunções que Bressane faz até a indiscernibilidade... da poesia com a vida, do pensamento com o delírio, da teoria com o êxtase. É um grande universo erótico em que todos os termos, todos os elementos estão em incessante processo de sedução (jamais de identificação), seduzindo uns aos outros...

Podemos pensar numa sexualidade pornográfica, sem qualquer contexto ou pensamento, e, no outro extremo, numa assexualidade textual, distanciada pelo intelecto. Os corpos são bonitos em Bressane porque são de uma sexualidade altamente mergulhada, em que o texto e o pensamento não são distância da vida, mas o contrário: é na poesia e na filosofia que se encontram as forças mais poderosas e inevitáveis, furiosas e criativas, para a potencialização da vida no corpo. Bressane e seus personagens leem, citam, recitam, para tornarem-se mais corpo, mais sexo. É bonito o corpo de Josie Antello, possivelmente um dos mais bonitos, desejáveis, e desejantes corpos que películas cinematográficas já imprimiram. É um grande encontro, o de Bressane com esse corpo embebido em texto e sensualidade, sensu-textualidade, texto-sensualidade... Encontro cujo alcance já havíamos experimentado em Filme de Amor (2003). Vemos na carne de Josie Antello e em seus gestos, as próprias movimentações da intuição de Bressane. Poderíamos nos entregar eternamente ao prazer hipnótico, perturbador, das sequências de dança e movimentação corporal de Josie, pontos altíssimos de Educação Sentimental. Há algo a respeito dessas sequências que jamais poderemos colocar em palavras.

A resistência alegre e desejante da vida em Bressane vê-se, também, na preferência por matérias densas – essas casas cuja materialidade, cuja fisicalidade nos envolve como que num convite irrecusável a habitá-las, cheias de texturas e marcas que fazem ressoar experiências palpáveis e indeterminadas, paredes descascadas, móveis maciços, objetos do passado, prontos para dar e receber a vida. Não é o peso imobilizador do passado como baú de memórias definidas, mas a ressonância da força da experiência passada irrompendo como força de experiência no presente, como abertura para a experiência corpórea, afetiva e pesquisadora no presente. Os espaços de Bressane são os opostos aos ambientes rarefeitos, minimalistas, frios e secos da paisagem moderna, e também do acúmulo de referências da cultura pop e de objetos de design e decoração de última moda dos espaços mais “contemporâneos”.

Essa preferência pela matéria densa, pela densidade da vida, está presente em Educação Sentimental, diretamente, no uso da película (em plena era digital). Quando se filma, ocorre um processo físico-químico, um processo “natural” (como dizia Bazin), uma impressão em celuloide... O filme é um material, nos afeta de forma física, imprimindo materialidade (mesmo que de outra natureza) aos objetos e corpos apresentados. Película não é apenas uma definição, mas uma textura e uma qualidade. Enquanto a imagem digital, por sua vez, não é matéria, mas informações, dados... Sentimos que podemos tocar, mexer no filme... (e era tocando, mexendo manualmente na película que os profissionais da era da moviola montavam seus filmes). O mesmo não se pode dizer da imagem digital de alta definição, que nossas mãos ultrapassariam como a um fantasma, uma abstração, um pacote de dados. É claro que não se trata de um disputa da qual um dos suportes deva sair vencedor, pois reconhecemos a importância da democratização do acesso ao audiovisual e também dos possíveis usos estéticos do vídeo e da imagem digital, que são outros, válidos, interessantes e potentes à sua maneira: no entanto, é preciso perceber que, nessa conversa, não se trata apenas de um embate quantitativo entre graus de definição, mas de relações (não hierárquicas, mas diferenciais) de qualidade. Que qualidade se quer dar à imagem, para uma determinada proposta estética? Se tudo o que queremos é passar uma informação – como, por exemplo, a personagem entrou na sala – tanto faz que tipo de suporte usaremos, contanto que mostremos essa ação, seja lá como for. No entanto, quando se quer afetar o espectador de uma determinada maneira, mais ainda dentro do contexto de um cinema da densidade, do afeto material e da corporeidade, torna-se indispensável a busca por qualidades que, muitas vezes, não terão a definição (alta ou não) como valor determinante. Película, filme, é material sensível. Em uma bela sequência de Educação Sentimental, a personagem de Josie Antello manipula um pedaço de filme, um pequeno fragmento de rolo cinematográfico. Ela diz que, logo, as películas ocuparão um “museu das sensibilidades perdidas”.

Educação Sentimental fala, sensivelmente, dessas sensibilidades perdidas. O jovem Áureo – interpretado pelo ator Bernardo Marinho – alegremente silencioso, que atrai a falante Áurea e atrai-se por ela, conecta-se com a experiência visceral, poética-vital, da mulher, através de sua disposição e avidez por ouvir, aprender e experimentar o novo, o novo que vem do passado. Áurea, logo no início, conta para o rapaz o mito (análogo à então nascente relação) da Lua que se sentira atraída pelo jovem Endimião... Ambos, Áurea e Áureo, Lua e Endimião, são sedutores à sua maneira, seduzem-se um ao outro pela diferença dos seus alcances, cujo encontro pode levar cada um a alcances muito maiores, mais extensos, mais profundos... Bressane parece nos mostrar a potência que nasceria de um encontro mutuamente sedutor entre passado e futuro, o novo que vem do passado: e se o cinema do passado seduzisse o atual cinema, deixando-se ao mesmo tempo ser seduzido por este? Se passado e futuro se apaixonassem?

Adendo:

Em Educação Sentimental, o que nos desagrada é apenas a última parte, a “Circuncena” que Bressane incluiu como uma espécie de adendo que mostra imagens da feitura do filme, a equipe, o diretor, os atores antes e depois dos planos, comentários, brincadeiras. Adendo, este, que nos chega como desnecessário, ou talvez ainda mais, como atrapalhando um pouco a força do que veio imediatamente antes. É como se, no fim, houvesse uma breve tentativa de, não se sabe por que, tornar-se um pouco mais “atual” ou sincronizado com o “Cronos” dos novos tempos: porém, o que poderia imprimir leveza e experimentalidade, rarefaz e dessintoniza, dispersa a força. Mas, não há problemas: ressintonizamos, ao imaginar que o DVD apenas pulou diretamente para os extras, e que o filme terminou na igualmente hipnótica, perturbadora imagem do rapaz deitado, com a lua acima em movimento descendente, vindo deitar sobre ele...

-------------------

GARE DU NORD/GEOGRAFIA HUMANA

por Marcia Vitari


São dois filmes em torno da Gare du Nord. Maior estação de trens da Europa, terceira do mundo. Está no centro de Paris. Passagem de milhares de pessoas dos mais variados tipos e finalidades. São 180 milhões por ano. Por lá circulam desde passageiros até habitués diários em seu flanar pela estação. Gangues da periferia, emigrantes, imigrantes, turistas, uma fauna digna de registro. Motivo para a diretora Claire Simon pensar em realizar, tanto um documentário quanto um filme de ficção. Em sua composição da “Geografia Humana” que circula por amplos corredores e galerias, com um comércio variado e farto, ela se detêm em tipos exóticos e corriqueiros. Quase sempre estrangeiros que chegam na busca de uma condição melhor de vida: uns com intenção de permanecer, outros de voltar ao seu local de origem; além de pessoas que estão apenas de passagem, ou fazendo uma parada num itinerário fluido e constante. Casais de namorados, famílias em visita, trabalhadores e franco-atiradores. É o testemunho de histórias de vidas com uma intimidade calma, ou mesmo no calor de um istmo de tempo, entre a chegada e a partida.

Para conduzir as entrevistas, é convidado um amigo de origem argelina, Simon Merabet, que também, como muitos daqueles que circulam por ali, é um autêntico globetrotter. Sua abordagem não é aquela do tipo jornalístico. Ao contrário, ele se inclui nas perguntas e vai nos contando sua história de vida, gerando, assim, identidade com o interlocutor e espectador. Como se estivéssemos participando de uma conversa informal entre dois velhos amigos. Suas lembranças de exílio e suas características físicas, que o tornam alvo direto das agruras que vivenciam os forasteiros, são incluídas nos relatos sem nenhuma afetação, mas com naturalidade. Muitas vezes, nas filmagens, eles tiveram que driblar censuras e proibições - como no caso da faxineira do banheiro da loja Benetton (carinhosamente chamada de Mama pelos usuários) que, proibida de dar seu depoimento na própria loja, é deslocada por eles até um café para continuar a conversa. Nada os intimida.

São iranianos, coreanos, cubanos, um mapa mundi étnico convivendo num mesmo espaço, um autêntico microcosmo do mundo. Tamanha riqueza de conteúdo arquitetônico e humano permitiu o desenvolvimento de um roteiro de ficção: “Gare du Nord”. Este projeto duplo é fruto de uma imersão ao longo de dois anos – ao todo, 21 dias corridos de captação de material. Enquanto no documentário a diretora se esconde por trás da câmera que manipula e eventualmente faz perguntas; no de ficção, ela desempenha o papel de protagonista, o fio condutor de várias outras histórias que aparecem e desaparecem como um trem na estação. Ela observa de longe ou imerge nas situações mesmo de forma física, como num ataque a uma loja em que tenta ajudar uma vendedora acuada. Nada é distanciamento ou indiferença. Até os fantasmas da estação interagem de forma direta com os transeuntes e interferem diretamente em suas vidas.

Claire Simon, onipresente, também veio à cidade do Rio para participar do Festival de Cinema. À parte suas orientações ao querer alterar o enquadramento do filme na tela após o início da projeção no Instituto Moreira Salles, insatisfeita com o formato; e de querer melhorar a saturação das cores antes da projeção no Estação Botafogo - o que redundou em atrasos nas seções -, ela foi solícita e simpática, respondendo com gentileza e paciência todas as perguntas e questionamentos. Mesmo quando lhe perguntaram se tinha planos de fazer um filme do gênero na estação de trens em Lyon – a segunda maior cidade francesa, depois de Paris -, ela foi taxativa dizendo que não, já que considera um lugar burguês, portanto, sem os atrativos e diversidade que consegue encontrar em Paris. Cidade-luz que, banhada pelos holofotes da diretora, se despiu de seu glamour habitual e adquiriu ares de velha dama cansada de guerra. Um retrato da vida de pessoas comuns, com seus problemas de adaptação, hesitações e temores incluídos nos riscos das mudanças e no projeto de errância. Um documento legítimo de alguém que conhece de dentro a cidade e decide realizar um apanhado antropológico/sociológico de um espaço vital de qualquer grande metrópole.

-----------------

YELLA

por Dinara Guimarães


“Yella”, de Christian Petzold (Alemanha, 2007) é composto em dois níveis: o fantasma do passado e o desafio do presente. Assim problematiza o que quer uma mulher, a jovem e bela, Yella, dividida entre dois mundos. Um situado na sua pequena cidade natal no leste da Alemanha do qual tenta cortar os laços afetivos com o ex-marido e sócio de uma pequena empresa artesanal falida. O outro no Oeste da Alemanha, em Hanôver, onde vai trabalhar e aí descobre seu talento feminino para negociar no mundo do capital de risco.

O filme situa a matriz de atos que afetam tanto a sociedade contemporânea em transição. Entre o desafio no mundo dos negócios que se retroalimenta da impostura e a tradição que se retroalimenta dos valores estabelecidos, Yella, aparece sempre convicta de que é preciso ascender na vida profissional, nem que seja movida pelo senso de oportunidade na sociedade de práticas amorais das cadeias globais e que engolem o pequeno mercado desprotegido.

Com a cena final da morte com que inicia o filme, Petzold representa uma Alemanha que não existe mais e em que os resultados universais e trágicos do que narra ainda são sombras do fantasma do passado, sombras reais. A montagem hábil costura momentos desiguais de fantasmas e sonhos com realidade pungente. A atuação brilhante de Nina Hoss no papel de Yella revela-se tão forte que consagrou o diretor no Novo Cinema Alemão da chamada Escola de Berlim. Ele se refere ao mundo entre duas mortes, a morte real e a morte simbólica que coloca em causa modelos de subjetividade.

-----------------------------

SACRO GRA

por Carlos Alberto Mattos


Quem estiver razoavelmente habituado a ver documentários recentes, especialmente os brasileiros dedicados a personagens de periferia, dificilmente vai entender a decisão do júri de Veneza de dar o Leão de Ouro a Sacro Gra. Ali está o que de mais inócuo o cinema direto pode suscitar: uma observação fria e indiferente que não consegue criar dramaturgia nem construir criaturas minimamente interessantes.

O verbo "conseguir" talvez não se aplique ao método do diretor Gianfranco Rosi. Ele não parece mesmo interessado em forjar empatia ou fornecer uma visão menos superficial de seus personagens. Um bombeiro socorrista, um cientista devotado a proteger palmeiras, um aristocrata que aluga sua mansão para eventos, um velho meio filósofo e sua filha, um pescador de enguias, um estranho casal que vive num trailer, algumas stripers... Essas figuras pitorescas são vistas através de fragmentos de diálogos ou monólogos sem continuidade, alternados num misto de falso flagrante e cenas posadas. O aleatório de tudo isso leva a uma sensação de quase completa irrelevância.

A relação dos personagens com a estrada – o Grande Raccordo Anulare (GRA) – é igualmente desimportante, à exceção talvez dos romanos que possam completar os sentidos com a própria vivência da cidade. Para nosotros, aquela gente poderia estar em qualquer lugar da Itália e continuaria a não significar muita coisa. Alguns podem se impressionar com as belas imagens (noturnas que lembram as do nosso fotógrafo Ivo Lopes Araújo) e o trabalho sonoro de supressão de ruídos, que cria uma atmosfera intimista e quase irreal para a rodovia e suas cercanias. Mas essas qualidades de estilo me pareceram insuficientes para justificar um trabalho tão insípido, aborrecido e, no fundo, bastante pretensioso. Uma pena que o Leão vesgo de Veneza tenha mirado errado quando decidiu pela primeira vez agraciar um documentário.

---------------

ONLY LOVERS LEFT ALIVE

por Luiz Fernando Gallego


Com os personagens centrais chamados nada sutilmente de ‘Adam’ e ‘Eve’, Jim Jarmusch parece ter pretendido injetar sangue novo em um filme de vampiros: desta vez eles podem ser bem intelectualizados, cultos e civilizados. Pelo menos nesta amostragem do casal vivido por Tilda Swinton (como é que ninguém ainda havia pensado nesse tipo de papel para ela?) e Tom Hiddelston (que saltou da pequena participação como o elegante F. Scott Fitzgerald de Meia-Noite em Paris para ser o amante de Rachel Weisz em Amor Profundo - e dali para fazer o 'Loki' de The Avengers). Como cota extra de alto nível artístico vamos descobrir que Christopher Marlowe ainda está vivo (como vampiro e na pele de John Hurt) assim como seremos informado que foi Marlowe que, de fato, escreveu as peças atribuídas a Shakespeare, em mais uma investida contra a autoria do ator-autor de Hamlet.

Fora deste círculo elitizado onde Ewe lê os clássicos da literatura em todas as línguas em que originalmente foram escritos e Adam compõe música contemporânea (sendo que no passado escreveu o Adágio para o Quinteto para cordas de Schubert), há também ‘Ava’, irmã de Ewe, de aspecto mais jovial, quase-adolescente (Mia Wasikowska) e “porra-louca”. Portanto nada benquista pelo melancólico Adam. Quando Ava entra em cena, surge certo grau de conflito que deixa o filme um pouco mais interessante, mas a essa altura da projeção (que vai chegar, sem justificativa para tanto, a 123 minutos), o modo blasé de Jarmusch conduzir seu esgarçado enredo já definiu o resultado como anêmico.

O ótimo elenco (com a melhor oportunidade que Hiddelston já teve para mostrar sua versatilidade) e algumas tiradas de humor um tanto ralo não são suficientes para salvar esse projeto da falta de originalidade, investindo em piadinhas sobre falsos mitos de afastar vampiros (alho seria inócuo) e em outras tiradas já exploradas em alguns filmes que tentaram (e conseguiram) inovar no gênero. Não é o caso desta vez. Se A Dança dos Vampiros de Polanski envelheceu no que tinha de irreverente em sua época, este Only lovers left alive já nasceu com jeito de coisa velha. Ainda mais depois do contundente Deixa ela entrar. Trinta anos depois de The Hunger (Fome de Viver) ter associado o vampiro contemporâneo ao mundo do rock, Jarmusch repete "inovações" que, pela repetição, já não o são. Tudo isso para concluir sua fábula (?) com a demonstração de que nosso verniz cultural se quebra quando a necessidade de sobrevivência se impõe. Muito tempo para tão pouco.

------------------------------



ROUBAMOS SEGREDOS: A HISTÓRIA DO WIKILEAKS

por Carlos Alberto Mattos


Alex Gibney não conseguiu entrevistar diretamente os dois personagens principais de Roubamos Segredos. Bradley Manning, o soldado que vazou o lote de informações sobre a guerra do Afeganistão, está preso incomunicável. Julian Assange, o criador do Wikileaks, em seu refúgio na embaixada do Equador em Londres, pediu 1 milhão de dólares pela entrevista. Gibney recusou-se a pagar e fez um filme que comprova: é possível realizar um grande documentário sem conversar com seus protagonistas.

A riqueza do material recolhido sobre Assange – incluindo cenas da intimidade do seu trabalho – permite desenhar um perfil abrangente do mais famoso hacker da História desde suas primeiras peripécias na Austrália natal, passando pelo estouro na Islândia e o inferno das denúncias de crime sexual. Sobre Manning, o filme recorre a um ex-namorado e ao amigo que o denunciou ao governo americano para rascunhar uma personalidade em crise, marcada por problemas de inadaptação social e identidade sexual. Aliás, se dessa incrível história tão típica do nosso tempo emerge alguma consideração humana é que o nerdismo da computação e da internet absorve carências pessoais profundas e estimula a sensação de onipotência. Assange, em seu radicalismo, assume uma postura quase deífica quando coloca vidas humanas abaixo da sua convicção de que tudo deve ser divulgado exceto as fontes.

Gibney usa um artifício dramatúrgico passível de contestação. Na primeira parte do filme, reúne as referências elogiosas a Assange e ao Wikileaks. Quando a trajetória de ambos chega aos impasses mais recentes, os mesmos entrevistados de antes revelam-se como ex-colaboradores e desafetos, dando margem às restrições e críticas que matizam o herói descrito até então. É um truque, sem dúvida, mas possibilita uma visão mais complexa do personagem, sem louvações escancaradas nem demolições raivosas.

Para além dos indivíduos, o filme expõe um dossiê de atualidade extremamente preocupante e ao mesmo tempo excitante. Depois da popularização da web e do 11 de setembro, a ideia de segredo se transformou numa obsessão e num pesadelo. Tudo pode ser escondido com a mesma facilidade com que pode ser descoberto. Para surpresa do espectador, o título original do filme. "We Steal Secrets", não vem de uma fala de Assange nem de qualquer privacy breacher adolescente, mas de alguém inesperado. As recentes revelações de espionagem virtual dos EUA e do Canadá em outros países descortinam uma espécie de mega-Wikileaks oficial e põem na berlinda o próprio estatuto do segredo. Julian Assange caminha para se transformar, de estrela da mídia e até símbolo sexual, em apenas um capítulo do fim da história da privacidade.

-------------------

CRYSTAL FAIRY E O CACTUS MÁGICO

por Marcelo Janot


“Crystal Fairy e o Cactus Mágico” é uma produção chilena dirigida pelo mesmo Sebastián Silva do ótimo “A Criada” e estrelada pelos americanos Michael Cera, de “Juno” e “Superbad”, e Gaby Hoffman, ex-atriz mirim de filmes como “Todos Dizem Eu Te Amo”. Trata-se de um road movie sobre um jovem americano fútil (Cera) obcecado com a ideia de percorrer as estradas do norte do Chile para tomar um chá alucinógeno feito com a substância de um certo tipo de cactos. A ele e seus amigos chilenos se junta uma riponga natureba (Hoffman) chegada a cristais e outros misticismos e que atende pelo nome de Crystal Fairy (Fada Cristal).

Estabelecido o ponto de partida em cima de personagens tão estereotipados, imagina-se aonde o diretor quer chegar. Um rápido aceno a um elemento sobrenatural é apenas uma falsa pista que não se confirma em uma história banal sobre redenção e personagens modificados pela experiência na estrada. As belas paisagens do deserto e o esforço e carisma de Cera criam uma expectativa de que seu personagem possa oferecer algo além do óbvio, mas isso não acontece. Quando chega o momento de redenção para ele e para a chatíssima Crystal, a narrativa já atingiu um grau de enfado tão grande que o drama se dissolve na mais completa indiferença.

--------------



JOGO DAS DECAPITAÇÕES

Por Daniel Schenker


Sergio Bianchi volta a mirar contra o engajamento falso, hipócrita, em Jogo das Decapitações, através de antigos militantes do período da ditadura que, agora, estão interessados, sobretudo, em aparecer bem na foto. “Uma certa seriedade pelo que passamos”, recomenda Marilia (Clarisse Abujamra), logo antes da foto, que, como os demais companheiros, não se incomoda que a tortura seja lembrada em exposição por meio de um ato performático.

Nesse novo filme, Sergio Bianchi realça a decepção acerca dos desdobramentos decorrentes da passagem do tempo. O entrelaçamento entre passado e presente vem à tona através de ecos do seu primeiro longa-metragem, Maldita Coincidência (1979) – evocado, porém, como se fosse o filme de Jairo Mendes (personagem de Paulo Cesar Pereio) censurado em 1973. Bianchi, inclusive, traz à tona atores de Maldita Coincidência, centrado numa espécie de comunidade hippie instalada num casarão abandonado, como Sergio Mamberti e Maria Alice Vergueiro.

A descrença do cineasta com o presente é evidenciada em flagrantes de truculência policial – mas praticada, de acordo com o diretor, para resgatar a sensação de segurança desejada pela classe média – e no tratamento destinado aos presos comuns em penitenciárias superlotadas. Bianchi sublinha ainda as mal administradas e deformadas relações de poder (entre patrão e empregado, orientador e orientando) num filme que transita entre a contundente abordagem da realidade e os crescentes delírios vivenciados por Leandro (Fernando Alves Pinto), filho de Marilia, cada vez mais desestabilizado. Destaque para o elenco, composto por muitos atores notabilizados no teatro, especialmente Clarisse Abujamra e Silvio Guindane.

----------------

COMO NÃO PERDER ESSA MULHER

Por Daniel Schenker


Lembrado pela atuação em (500) Dias com Ela, Joseph Gordon-Levitt não temeu acumular funções em Como não Perder essa Mulher: além de dirigir, assina o roteiro e protagoniza a história de Jon, rapaz viciado em pornografia que se vangloria da alta rotatividade com que as mulheres passam pela sua cama. Solteiro por convicção, Jon ensaia uma mudança a partir do momento em que conhece a autoritária Barbara (Scarlett Johansson) e, mais ainda, a sofrida Esther (Julianne Moore).

Ao longo da projeção, a “redenção” do personagem soa um tanto previsível e algo esquemática. Gordon-Levitt investe em ritmo ágil e tiradas de humor e coloca o público na posição do padre (quando Jon se confessa, prática semanal, ele o faz de frente para a câmera), figura invisível, presente no filme apenas pela voz em off. A maior compensação em relação às limitações dessa produção concisa (90 minutos) está no trabalho dos atores, sintonizados com seus personagens.

--------------

EU E VOCÊ

por Carlos Alberto Mattos


Um Bertolucci sem sexo nem política é algo raro de se ver. Io e Te é um deles. Talvez por isso seja tão pouco bertolucciana essa história de um adolescente claustrofílico, antissocial e edipiano que foge da família durante uma semana escondendo-se no porão do prédio onde mora. Sua meia-irmã viciada em drogas por acaso vai fazer-lhe uma companhia a princípio indesejada. Ao contrário dele, ela é exposta demais. Será que a convivência vai mexer com o modo de vida dos dois?

O problema é que a relação deles quase não evolui, e o pouco que faz é de modo bastante previsível. Há uma série de metáforas envolvendo animais e um psicanalista em cadeira de rodas que pode ser uma projeção do próprio diretor. Os atores têm atuações muito naturais, o que é bom para a historinha mas esvazia a tensão de outros trabalhos de Bertolucci como o último e longinquamente assemelhado OS SONHADORES. Enfim, um filme pequeno, pouco reconhecível na filmografia do mestre, e onde as canções de David Bowie jogam uma pálida luz de vida.

--------------

AS DELÍCIAS DA TARDE

por Rômulo Cyríaco


O filme independente americano contemporâneo e já tradicional – e, aqui, especificamente, vamos falar do ganhador do prêmio de melhor direção no último festival de Sundance – é este que não transa há mais de seis meses e faz análise por causa dos grandes estúdios.

Estes “filmes independentes americanos” ficcionais, que se tornaram uma espécie de gênero, com suas temáticas e estruturas artificiais similares, que recorrem à diferença somente através da disfunção, repletos de estereótipos que funcionam mal, não têm nada de independente. Pelo contrário, por causa da dominação produtiva, estética e moral sistemática dos grandes estúdios e de suas narrativas, este cinema é aquele que, em conflito com o grande modelo mas não conseguindo se libertar dele como referência, como um adolescente rebelde mas ainda preso em seu Édipo, é apenas disfuncional e, em consequência, não consegue olhar nos olhos do seu parceiro no momento do orgasmo, e imagina, no lugar deste, outras pessoas... de preferência um ator famoso, já absorvido pelos grandes estúdios, como Michael Fassbender.

Estes elementos e referências específicos, os quais mencionamos acima, estão todos em As delícias da tarde (2012), que é o longa-metragem de estreia da diretora Jill Soloway. Um casal em crise no casamento, querendo “apimentar” a relação, vai a um clube de strip-tease, onde o marido paga para a esposa uma lap dance de uma striper... Posteriormente, a mulher reencontra a striper/prostituta, e, aproximando-se dela, a hospeda em sua casa quando a menina é subitamente despejada. A partir daí, outras coisas previsíveis começam a acontecer; e o que não é previsível, é gratuito, e sem qualquer força estética, dramática ou vital.

Contrapõe-se ao winner, o loser. São os DDAs, os bipolares, os depressivos, os casais infelizes, as famílias em crise, todos eles produzidos (e imediatamente cuspidos, expelidos) pela indústria secular dos estereótipos e dos clichês cinematográficos, mercadológicos, publicitários, agora refugiados no filme independente que os tomou como protagonistas ideais, tornando-os “engraçados”, “interessantes”, “exóticos”. Tenta-se forçar um “exotismo” aos personagens, mas eles só podem ser exóticos para olhares totalmente aprisionados em um mundo rígido. É a tentativa da validação produtiva do disfuncional – mas, como a atmosfera ainda é por demais hollywoodiana, o roteiro obedecendo a fórmulas narrativas antiquadas, preenchendo-as com conteúdos supostamente “inusitados”, a câmera fazendo o clichê da “câmera mais livre”, esta injeção de ânimo no desânimo resulta também, imediatamente, em seu oposto: o ânimo, aqui artificial, contamina-se do desânimo generalizado de um certo cinema americano que (mesmo sendo independente) não se recorda mais do frescor da vida.

Através da disfunção, este cinema, com sua fórmula narrativa que – como alguns de seus personagens – é interiormente rígida mas, em público, tenta agir de forma mais relaxada (via impulsividade, compulsividade, verborragia)... permite a entrada de elementos como álcool, maconha, sexo, prostituição, adultério, entre outras coisas “polêmicas”, mas não permite a entrada de oxigênio, portanto não deixa por um instante de ser extremamente careta e de tratar mecanicamente tais assuntos, tentando em vão forçar uma aparência de “abertura” e “relaxamento” que, por sua artificialidade, retira de tudo e de qualquer coisa o seu potencial de risco, perigo e transformação. O roteiro, os personagens, os diálogos, os atores: tudo artificial.

Para falar de personagens estranhos e de um mundo verdadeiramente exótico – no intuito de oferecer um contraponto radical ao filme em questão – penso em Jacques Rivette, em filmes como Céline e Julie vão de Barco (1974), Duelo (1976), A Ponte do Norte (1981), entre outros. Nestes, as personagens transformam o mundo ao seu redor e o seu próprio, não habitam mais um mundo “real” rígido que pudesse fazer delas pessoas disfuncionais, exploram horizontalmente a realidade do mundo e suas múltiplas funcionalidades. Seu exotismo, sua estranheza radical, suas velocidades imprevisíveis (acelerações indomáveis e lentidões disruptivas) não se oferece como resposta forçosa a um comportamento padrão, mas implica a modificação de todos os comportamentos e estruturas, e as leva a liberar uma vida molecular, dinâmica, corpórea, sutil, lúdica, cheia de humor, criatividade, inventividade, independência em relação a qualquer parâmetro de normalidade e classificação, em que não existe análise, neurose, casamento publicitário em crise, mas apenas alegria, potência e a possibilidade de bons encontros...

É em outros lugares, em cinemas verdadeiramente independentes como o de Rivette, para citar apenas um, que encontramos o exótico: não mais como o que está fora do olhar padrão ainda tomando-o como referência, mas onde não há mais qualquer olhar que se posicione no centro, como um centro de julgamento, e, por isso, tudo é, essencialmente, ex-ótico, e a vida, assim como os olhares, encontram-se radicalmente livres...

-----------------------

WALESA

por Carlos Alberto Mattos


É irresistível buscar paralelos e diferenças entre Walesa, O Homem Esperança e Lula, o Filho do Brasil. Não apenas pela semelhança de trajetória dos personagens, mas também pela similaridade dos projetos de contar a ascensão dos personagens, entre a família e o trabalho, até pouco antes de ambos chegarem à presidência da República. Se em Lula temos a coadjuvante-âncora de Dona Lindu, em Walesa há Danuta, a esposa que recebe os rebatimentos das lutas do marido. Nos dois filmes, acompanhamos a transformação de um operário em líder sindical e depois líder nacional. Mas ao contrário do Lula de Fábio Barreto, cuja história seguimos desde a infância passando por sua formação, o Walesa de Wajda já encontramos pronto, autodidata, muito cioso e ciente da sua condição de líder. Isso reduz bastante a ideia de uma biografia, concentrando-se num recorte temporal menor, embora não necessariamente mais denso.

O caráter mais modesto e a inteligência menos fanfarrona de Lula fazem dele um personagem mais carismático. As formalidades burocráticas do regime comunista tornam o filme de Wajda mais sombrio, embora não tanto quanto O Homem de Mármore e O Homem de Ferro, os dois tomos anteriores da trilogia. O mestre polonês quis aqui fazer um espetáculo didático que sintetizasse grandes questões em diálogos e situações pontuais (como a ótima sequência em que uma guarda do presídio amamenta a filha do sindicalista preso). Em relação ao estilo, a mescla de imagens de arquivo das lutas do Solidariedade com o material encenado, tanto no que diz respeito aos enquadramentos quanto às texturas, é bastante sugestiva, um pouco na linha do No, de Pablo Larraín.

Lula e Walesa são dois filmes-elogio. Talvez a grande diferença entre eles seja o gênero adotado. Lula era um melodrama político que atuava a nível das simpatias e afetividades. Walesa é um drama passado no xadrez da política, que depende menos de valores afetivos. A vaidade de Walesa, realçada em muitos momentos e principalmente na entrevista a Oriana Fallacci, mostrada de maneira quase caricata, é uma tintura algo crítica que Wajda utiliza para temperar seu aplauso ao "homem esperança".

-----------------

HELI

por Gabriel Papaléo


Amat Escalante ganhou o prêmio de melhor diretor em Cannes por este seu novo trabalho. Logo no primeiro take, um plano-sequência muito bem realizado, já se percebe a estética handheld que o mexicano usa em Heli, aplicada com eficiência. É um clichê do cinema-verité reciclado desde a Palma de Ouro dos Dardennes por Rosetta - e que ainda pode ser bem utilizado. No entanto, se muitos diretores escolhem a câmera-na-mão pelo realismo, Escalante parece escolhê-la pela maneira com que essa forma registra o choque. O diretor não apenas busca o choque desde o citado primeiro take; ele subverte sua estética para investir em planos estáticos, secos, visando expor a violência.

Ao apresentar seus personagens, Escalante demonstra uma certa falta de pulso como narrador. Eleger um censo, síntese da exposição de informações, como maneira de introduzir seus personagens ao espectador é dos recursos mais preguiçosos. No entanto, o roteirista compensa a fragilidade de construção com um poderoso setting: o deserto do México em Heli é frio e surreal, com uma aridez que a fotografia de-satura; um palco adequado para um relato de abusos. Os planos abertos reforçam o isolamento, como se aquela cidade fosse abandonada pelo resto do mundo; e as cenas de treinamento militar são desconfortáveis, bem encaixadas na proposta. E no contraste de qualidade entre pano de fundo e trama, os personagens, simples em suas construções, acabam funcionando devido às situações pelas quais passam.

Esse contraste pode ser percebido através dos temas trabalhados pelo diretor. Sob o ponto de vista temático, o filme vai evoluindo com destreza. Sugere a hereditariedade na tortura da região – e na autoridade, como frisa a policial que perdeu o marido; insinua a naturalidade com que a violência é vista (a matriarca observa a mutilação e nada faz); e ressalta a burocracia dos procedimentos policiais. A boa estrutura narrativa do filme é composta visando atacar o abuso de poder dessas autoridades locais – sejam policiais, criminosos ou militares –, mas logo se volta para o estudo de personagem, com diretrizes morais ilógicas para a narrativa. Heli, o personagem, delira com a chegada de uma camionete militar com imensa metralhadora, sofre com a repressão fascista das instituições locais, mas é só após uma demonstração física de vingança que obtém paz de espírito para se entregar aos seus prazeres. Seria uma nuance dramática forte se fosse questionada, mas ao registrá-la com atmosfera pacífica, Escalante se perde – e se contradiz – em seu estudo. Não por acaso, a subtrama de abstinência sexual soa deslocada até seu desfecho; é uma contradição que só se evidencia no último take.

Não se condena tanto a vitimização com que Heli entrega seus personagens (o choro de todos os torturados é silencioso) porque se adequam à visão de mundo ali apresentada, mas cobrar do espectador cumplicidade com um protagonista que só se sente realizado quando se torna um homem tão errado quanto aqueles criticados ao longo da trama é um esforço por demais exagerado para passar batido.

As cenas de tortura que chegam a envolver fogo nas partes genitais de um homem acabam vazias em seu contexto. Se a violência liberta, as melhores apostas do eleito homem de bem também seriam um taco de críquete, álcool e um isqueiro?

Ou seriam essas as armas da amoralidade?

----------------------------------------

O IMIGRANTE

por Luiz Fernando Gallego


Primeiro filme de época assinado por James Gray, O Imigrante (ou o título original The Immigrant seria mais bem traduzido como “A" Imigrante ?) se passa em 1921, e começa com a chegada à América do Norte de duas irmãs polonesas: Magda, com tuberculose, terá que ficar de quarentena na Ilha Ellis, a famosa porta de entrada dos que iam tentar a vida no “novo mundo”; já Ewa (Marion Cotillard) corre o risco de deportação sob alegação de que o endereço que trazia, de tios já residentes em Nova York (para provar que tinha onde morar), seria “inexistente”. Mas, principalmente, porque teria apresentado comportamento de “moral duvidosa” durante a longa viagem da Europa até ali.

Ewa não tem a aparência de que tenha tido tal conduta, mas, considerada como sem condições de se sustentar, teria que retornar ao velho continente - não fosse a interferência de Bruno (Joaquin Phoenix) junto ao guarda que impediu Ewa de passar na imigração. A partir de tal “resgate” o roteiro do próprio Gray, em parceria com Rick Minello (com quem também escreveu seu filme anterior), reserva uma série de dissabores para Ewa, certamente semelhantes aos que, no Rio de Janeiro da mesma época, as chamadas “polacas” enfrentavam, constrangidas à prostituição como único meio de sobrevivência.

Como chamariz apenas levemente disfarçado, com finalidade evidente para clientes masculinos, Bruno encena um precário espetáculo de vaudeville onde “suas” moças desfilam no palco como tipos estrangeiros: “espanholas”, “egípcias” e até mesmo com vestimenta de “Estátua da Liberdade” que - ironicamente - é destinada à tímida Ewa, agora sem liberdade de escapar ao que Bruno lhe impôs.

Sim, The Immigrant é um melodrama que (por acaso?) se passa no mesmo ano em que D.W.Griffith lançou um filme também centrado nas agruras de duas irmãs, ainda que situado na época da Revolução Francesa (Órfãs da Tempestade); e dois anos depois de outro melodrama clássico de Griffith, Lírio Partido. Mesmo que tais referências não tenham existido para os roteiristas, o quinto longa de Gray se filia à tradição de grandes melodramas hollywoodianos - mas àqueles de um tipo particular que não se deixa levar por derramamentos que chegam ao dramalhão, tal como encontramos na obra de William Wyler em Tarde Demais, Jezebel, ou, principalmente, no subestimado Perdição por Amor (Carrie, 1952), extraído do livro de Theodore Dreiser, “Sister Carrie”. Se em O Imigrante a situação de base pode já ter sido bastante explorada (prostituição da heroína como única possibilidade e por motivos alheios à sua vontade), seu desenvolvimento, de modo sutil, vai apontar em outro sentido, o da redenção.

É curioso que Gray no seu filme anterior, aqui intitulado Amantes (título original Two Lovers, 2008), tenha se detido afetuosamente em alguns personagens de sua etnia judaica, e agora leve o “agenciador” judeu Bruno Weiss a se confrontar com a escuta da confissão católica da polonesa Ewa.

Desenvolvido dentro de um formato mais tradicional, se Grey exibe algum virtuosismo é o da simplicidade na narrativa, deixando evidente seu deslumbramento com o rosto de Marion Cotillard que é frequentemente exposto em grandes planos na tela larga (o roteiro foi escrito para ela). O fotógrafo iraniano Daruis Khondji já havia captado o semblante expressivo da atriz em Meia-Noite em Paris, mas desta vez lhe é pedido uma intensa e apaixonante proximidade. Já o ator–assinatura dos filmes de Gray, Joaquin Phoenix, parece ter que ceder a primazia para sua partner - até que chega sua última cena, quando tem oportunidade de mostrar, mais uma vez, o ator que é.

Exibido sem maior repercussão em Cannes, O Imigrante pode passar desapercebido pela escolha de uma narrativa sem lugar para brilhos formalistas supérfluos, mantendo o rígido controle do melodrama sem excessos. No entanto, o take final, praticamente um díptico, é precioso, mesmo mantendo o estilo, em certo sentido low profile, que o diretor imprimiu a este filme.

-------------------------------------

DAMAS DO SAMBA

por Carlos Alberto Mattos


O mundo do samba tem sido uma fonte aparentemente inesgotável de abordagens pelo cinema documental. A cada realizador compete encontrar o seu ângulo, o seu recorte, e a euforia do samba cuida de providenciar o restante. Susanna Lira, em Damas do Samba, procurou dar conta do axé que as mulheres trouxeram para as quadras, terreiros e pistas do carnaval. Não se assuste com as primeiras sequências um tanto histórico-explicativas, pois não são elas que vão dar o tom dominante. O roteiro trata do feminino no samba numa linha evolutiva que vai da Tia Ciata no início do século passado às meninas espevitadas que levam o gingado para o futuro nas escolas de samba mirins. Por esse caminho passam as tias, pastoras, baianas, porta-bandeiras, destaques, passistas, carnavalescas, aderecistas, cantoras – de figuras mitológicas a herdeiras da grande dinastia sambística carioca.

Quase todas aparecem "montadas", maquiadas, numa espécie de elogio do glamour ou da sensualidade. Várias delas oferecem pequenas performances à capella, destacando-se Dona Ivone Lara cantando Sonho Meu e Beth Carvalho imitando Clementina de Jesus. A abordagem interpretativa do fator feminino vai aos poucos cedendo lugar a simples manifestações de júbilo e emoção na medida em que elas falam de suas atividades e seu orgulho. No fim, impõe-se o clima de celebração, em meio a imagens muito bonitas que tiram partido do cromatismo exuberante dos figurinos do carnaval. Assim Damas do Samba acaba confirmando a noção de que, não importa a intenção inicial, tudo o que é do samba acaba mesmo em samba.

-----------------

BEHIND THE CANDELABRA

Marcelo Janot


Quem for assistir a “Behind The Candelabra” pretendendo conhecer a fundo a obra do músico e showman Liberace irá se decepcionar: o filme de Steven Soderbergh não explica porque aquele pianista extravagante que toca música clássica com roupagem pop faz tanto sucesso. Obviamente que o excesso de cafonice tem tudo a ver com a plateia repleta de senhoras de Las Vegas, mas aquilo representava o auge da carreira de Liberace ou era apenas uma maneira de faturar, como Elvis, em cima da popularidade de outrora? Pouco importa.

Na verdade, embora Michael Douglas esteja soberbo como Liberace, em um papel que, por ser tão distante de sua persona habitual, poderia cair na caricatura (como acontece com Rob Lowe interpretando um cirurgião plástico), o verdadeiro protagonista é Matt Damon. Seu personagem Scott, o adestrador de cães que virou assistente e namorado de Liberace, é apresentado de forma bem mais completa – afinal, o roteiro se baseia em livro autobiográfico do verdadeiro Scott.

O que Soderbergh oferece no que ele diz ser sua despedida é um interessante retrato de um período do showbiz em que a overdose de extravagância caminhava de mãos dadas com a hipocrisia, e aquele que talvez fosse o mais gay dos artistas da época era obrigado a disfarçar sua opção sexual – e poucos desconfiavam. Com o padrão habitual de qualidade das produções de longa-metragem para TV da HBO, “Behind the Candelabra” impressiona ainda mais no cinema, com seus cenários grandiosos, cores fortes e Michael Douglas brilhando como nunca em sua carreira.

----------------------

UM EPISÓDIO NA VIDA DE UM CATADOR DE FERRO-VELHO

por Gabriel Papaléo


Nazif é um homem comum: trabalhador, sustenta sua família, incluindo a mulher e duas filhas. Sai de tarde para cortar lenha, raspa o gelo do carro e procura ferro-velho abandonado para catar e vender – a baixíssimo custo. O protagonista do novo filme do bósnio Danis Tanovic habita uma história tipicamente neorrealista, com homens sofrendo na pele os problemas econômicos do país. E o diretor reconhece isso a todo o momento, realizando um drama muito próximo da realidade social da Bósnia atual.

A estrutura do roteiro se concentra na rotina de Nazif e da esposa, Senada, para introduzir a humilde vida do homem, sempre preocupado em conseguir arranjar o dinheiro necessário para passar o mês. O desenvolvimento se dá com poucos diálogos, observando os personagens pacientemente, assim como o ambiente onde vivem, com atuações marcantes de todos da família. Tanovic não se preocupa em estabelecer uma mise-en-scène complexa, compondo situações naturalistas, eficientes por provocar intimidade do espectador com os habitantes da aldeia. A câmera na mão auxilia nessa intimidade, criando momentos claustrofóbicos que a montagem ressalta, com cortes abruptos (como do carro ruim para o cano de descarga). E com essa iniciativa, Tanovic concebe momentos poderosos que soam tão espontâneos quanto simbólicos, tal como a montanha de lixo.

Quando Senada sofre com uma dor no abdômen Nazif tem que levá-la ao hospital. É aí que o filme tem seu ponto de ruptura: a secretária do hospital nega atendimento a Senada (que está com sérios riscos de aborto) e este momento-chave leva o longa a discutir o papel do governo na qualidade de vida do cidadão – como no cinema neorrealista. Nazif implora, em vão, porque sabe não estar em um ambiente propício à qualidade de vida. Em certo momento, ele diz que “era melhor na Guerra”, o que denota um claro desespero em seu pensamento. O homem divaga sobre seu momento na guerra, de como servira o país e fôra esquecido. Não é uma fala apenas sobre o passado: é sobre o presente.

Essa discussão social é o que Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho tem de mais complexo. A família de Nazif vive numa aldeia onde todos se respeitam, cumprimentam-se, ajudam-se – o que é colocado como contraponto extremo à impessoalidade do sistema de saúde da Bósnia-Herzegovina. O hospital onde Senada é levada insiste na apresentação de dinheiro para tratar um caso de emergência, o que culmina no desespero de Nazif buscando recursos financeiros. O lixo, a degradação do ambiente gelado e as agruras do catador são expostos de maneira simples, por toques visuais (a já citada montanha de lixo) ou pelo próprio texto (“94 marcos”).

As usinas da cidade, visão corriqueira no drama, são a representação que Tanovic encontra para comentar a frieza da metrópole, um lugar onde o protagonista fica claramente desconfortável. Um lugar de dualidade temporal. É um parecer realista não só pelo fato de Nazif-personagem e Nazif-ator serem praticamente a mesma pessoa; é uma extensão da realidade do leste europeu filmada pelo bósnio desde seu Terra de Ninguém, e que, dolorosamente, soa politicamente estagnada – ainda que inversa – há mais de 20 anos, desde o fim da União Soviética.

Além da camada social há um belo estudo de personagem no filme. O desenvolvimento de personagens é bem realizado quando se sente a emoção de um homem que tenta fazer de tudo para tranquilizar sua família. Seja no ótimo plano dos quatro deixando o hospital, seja no semblante feliz de Nazif, o filme é tocante, cheio de vida. Uma influência, diga-se de passagem, dos heróis de Vittorio de Sica, que tem a árdua tarefa de viver em tempos difíceis, mas o superam com solidariedade e a pureza da humilde alegria de abraçar sua mulher.

E o filme é bem eficiente na exposição da solidariedade dos aldeões versus a impessoalidade da cidade moderna. Quando as barreiras do que é ficcional e do que é realidade são rompidas – ao surgir o nome dos “atores” – o filme adentra num contexto de confissão documental. Visceralmente documental.

-------------------------------------

FLA x FLU

por Marcelo Janot


Este comentário crítico é feito por um tricolor apaixonado, portanto não espere qualquer tipo de isenção jornalística. O ótimo e imperdível documentário "Fla x Flu”, de Renato Terra, dá a real dimensão do significado do clássico e faz todos entenderem porque a letra do hino rubro negro diz que "no Fla x Flu é um ai Jesus". As lágrimas de um torcedor do Flamengo diante da lembrança de uma das muitas decisões históricas vencidas pelo Flu e o choro copioso de outro pela simples presença de uma camisa do Flu no seu raio de visão revelam o trauma que muitos rubro-negros tentam disfarçar a todo custo. Mas o doc também abre espaço para as provocações do outro lado. Flamenguistas ilustres como os ex-jogadores Zico e Junior relembram seus tempos de glória e valorizam a superioridade numérica da “nação” rubro-negra. O neto de Nelson Rodrigues utiliza a “evolução da espécie” como argumento para dizer que é flamenguista.

Só que embora a frieza dos números aponte uma vantagem estatística para o Flamengo nos confrontos, a maioria dos Fla x Flus históricos e decisivos foi vencida pelo tricolor. Dá até pena, depois que Assis relembra os tempos de carrasco em 1983 e 1984, ver Leandro comentando o gol que fez pelo Flamengo num empate em 1985, ano em que o Flu foi tricampeão. O melhor e mais divertido são as histórias de arquibancadas, que remetem a um tempo em que o futebol era muito mais paixão e menos marketing, e que o campeonato carioca ainda fazia a cidade parar. Um privilégio das gerações que viram Assis e Zico em campo, seja qual tenha sido o placar.

----------------

MAZZAROPI

por Carlos Alberto Mattos


A estreia do crítico Celso Sabadin como diretor não esconde seu DNA: Mazzaropi é filme de pesquisador, daqueles que adoram reunir dados, relacioná-los e apresentá-los de uma forma ágil e esclarecedora. Basta ver a quantidade de vertentes pelas quais ele procura retratar o cômico mais popular da história do cinema brasileiro: o artista de veia circense, o empresário arrojado, o produtor unha-de-fome, o companheiro ora grosseirão, ora carinhoso. A revelação de sua homossexualidade tem sido uma referência constante a este documentário, mas a verdade é que ele informa coisas bem mais relevantes para se compreender o fenômeno Mazzaropi.

Depoimentos, muitas cenas de filmes e algum "povo fala" compõem a pauta bastante convencional do doc. Da pletora de relatos colhidos por Sabadin, alguns "ensaios" se destacam sobre, por exemplo, a estética caipira paulista e a eterna polêmica entre arte popular e cultura intelectualizada. A natureza do personagem Mazzaropi acaba catalisando uma série de pronunciamentos anti-intelectuais e algumas platitudes sobre o valor do final feliz. Ainda assim, Mazzaropi permite nas entrelinhas uma leitura crítica do empreendedorismo à brasileira e dos discursos excludentes sobre a cultura.

----------------

MÁRIO LAGO

por Carlos Alberto Mattos


Bem que ele avisa na abertura do filme: homenagens precisam fazer chorar para serem bem-sucedidas. Se o homenageado morrer, então, é a glória. Mário Lago morreu em 2010, logo não há mais perigo. Familiares, amigos e colegas de trabalho podem elogiar à vontade, se emocionar com as lembranças deixadas pelo poeta, compositor, ator e homem de rádio. O corpo não está mais presente para sofrer os efeitos.

O documentário de Marco Abujamra e Markão Oliveira é uma peça de louvação de Mário Lago, mesmo quando se refere a seu lado mulherengo e boêmio, devidamente redimido por um casamento dito perfeito. Cenas de televisão e cinema recontam momentos diversos de sua carreira, às vezes com função metafórica, passo a passo com as histórias do comunista assumido que conquistou um lugar, se não ao sol, pelo menos ao mormaço na Globo da época da ditadura. Com alguma frequência, a força das rememorações se dilui no fluxo dos temas sucessivos, deixando uma impressão de trivialidade. Mas, no fim das contas, é o personagem carismático que se impõe, um cronista do modo de vida brasileiro que se espalhou por diversas formas de expressão.

------------------

A IMAGEM QUE FALTA

por Dinara Gouveia Guimarães


O documentário A Imagem que Falta (L’image manquante, Camboja/França, 2013), de Rithy Pahn, é um quase-manifesto da impossibilidade de se realizar uma sociedade comunitária livre de antagonismos e diferenças sociais. Ele conduz a uma reflexão sobre como entender politicamente esta impossibilidade fundada na realidade não-toda de se dizer em palavras, de se representar em imagens. O tema central, por conseguinte, é o de fazer uma leitura sutil da ideologia em seu intento de realizar o Bem convertido em um Mal.

Os registros documentais do genocídio praticado pelo Khmer Vermelho no regime de Pol Pot em seu país e que dizimou sua família são vinculados aos traumas que afetaram as subjetividades das vítimas representadas por esculturas de bonecos. Isso mostra como para Pahn, um sobrevivente do massacre, continuar a viver é ascender à simbolização de seus processos fantasmáticos, à capacidade de se lembrar da sua identidade apagada, de ligar a pulsão de morte à vida com a qual se pode brincar, construir.

---------------

A GRANDE BELEZA

Por Daniel Schenker


Em A Grande Beleza, Paolo Sorrentino (de Il Divo) entrelaça um panorama da decadência (traçado a partir de um olhar corrosivo lançado em relação à aristocracia hipócrita, ao teatro experimental vazio, à arte contemporânea questionável e ao catolicismo) com a jornada de Jep Gambardella (interpretado por Toni Servillo) que, conforme resume, aos 65 anos, chegou a Roma aos 26 querendo reinar na alta sociedade.

O objetivo de Sorrentino é claro: mostrar a miséria – ou, pelo menos, as mazelas – que cada um esconde por trás do personagem ostentado no cotidiano. Esta percepção é realçada por Jep, totalmente consciente dos mecanismos de atuação social praticado pelos que o rodeiam. E ele se inclui nesse painel. Escritor de um único livro, o sarcástico Jep viveu na noite, recusou um estilo mais regrado, perspectiva defendida no filme, de maneira um pouco moralista, a exemplo da cena em que o boêmio protagonista se compara à rotina de um casal mais estável. Mas Sorrentino realiza uma oportuna reflexão sobre a passagem do tempo - “A nostalgia é só o que resta para quem não acredita no futuro”, exclamam, em dado momento –, norteado por Jep, que não voltou a publicar porque nunca conseguiu encontrar a grande beleza que tanto procurava. Durante esse percurso, o público se depara com citações diversas (Proust, Flaubert, Pirandello, D’Annunzio) e humor afiado.

------------------

UM MERGULHO NO ESPAÇO

Por Daniel Schenker


Durante boa parte do tempo, a história do nadador Kuba (Mateusz Banasiuk) – que se apaixona por outro homem, Michal (Bartosz Gelner), e começa a se afastar de uma trajetória tradicionalmente estável, tanto no que se refere ao promissor futuro como atleta quanto ao relacionamento com a namorada, Sylwia (Marta Nieradkiewicz) – parece carecer de especificidade, como se o diretor Tomasz Wasilewski se limitasse a reeditar algo já visto.

Aos poucos, contudo, Um Mergulho no Espaço se impõe, não exatamente pela originalidade, mas por determinadas propostas de criação, como a partitura sonora rascante, incômoda, que potencializa o conflito atravessado pelo protagonista e a fotografia que privilegia o tom azul acinzentado. Wasilewski também chama atenção pelo despudor com que filma cenas de intimidade. À medida que a projeção avança e que o vínculo entre Kuba e Michal se intensifica, a produção ganha, até certo ponto, surpreendente dramaticidade, frisando a permanência da homofobia na contemporaneidade. Ainda no elenco, a atriz Katarzyna Herman, interpretando a mãe de Kuba, presente no longa anterior do cineasta, W Sypialni.

-----------------

UM ESTRANHO NO LAGO

por Luiz Fernando Gallego


Este filme pode ser visto como uma variante gay de Basic Instinct (Instinto Selvagem no título nacional) que ficou famoso, sobretudo, pela ampla cruzada de pernas da Sharon Stone. Troca-se o ambiente claustrofóbico de quartos (com estiletes sob a cama que acolhia casais heteros) por um belo ambiente aberto - o tal lago do título - que sugere um paraíso só de adões, sem evas. Eles estão quase sempre nus em um trecho da borda do lago, uma pequena praia, deitados ou sentados (não sei como aguentam aquele chão pedregoso). Portanto, não precisam cruzar as pernas para revelar os atributos que estimulam as atrações mútuas entre eles visando encontros sexuais descompromissados no mato que fica entre a prainha e o estacionamento onde os carros chegam diariamente no verão.

No lugar do estilete ameaçador – e, por isso mesmo, excitante para o personagem de Michael Douglas no filme do Paul Verhoeven – desta vez surge uma simples pergunta ao parceiro desconhecido que topou ir para o mato, e já na hora H: “Você faz questão de camisinha?” Como se fosse uma opção do tipo água com gás ou sem gás.

Há aqueles que “nem pensar” em tal hipótese, mas quem faz a pergunta já dá a entender que topa riscos. Esse é o caso de Franck, o personagem central do filme.

E haverá quem responda que não faz questão de usarem preservativo. Esse é o caso de Michel. Mas muito além disso, Michel já foi visto por Franck em situação que representa grande e gravíssima ameaça a quem estiver com ele. Só que, como diz o terceiro personagem central do enredo, um gorducho totalmente fora dos padrões, Henri (que diz não estar ali atrás de pegação), “Michel tem um corpão” e por isso, Franck, apaixonado, não estaria percebendo como o outro seria estranho e ameaçador. Henri não sabe que Franck sabe bem mais do que o que Henri desconfia.

Prêmio de direção para Alain Guiraudi na mostra Um certain regard em Cannes 2013, L’inconnu du lac (título original) parte de uma situação e ambientação interessantes, excluindo todo o mundo fora do lago, do mato ou do estacionamento. Este é visto várias vezes no mesmo ângulo panorâmico, como que pontuando cada novo dia em que Franck vai ao lago querendo encontros sexuais. O lago é deslumbrantemente fotografado e visualmente extraordinário. E o mato é o ponto de encontro com direito a algumas cenas de sexo explícito que podem não agradar ao público mais conservador.

Se a ideia básica é interessante, o desenvolvimento nem sempre é convincente, especialmente na tentativa de desenhar o personagem de Henri, a rigor o mais “estranho” naquele lugar (no caso de aceitarmos que ele de fato não tem interesses homossexuais). O ator Patrick d’Assunção ajuda a manter um lado banal e outro mais enigmático para o personagem, mas as intenções do diretor e roteirista não ficam muito claras: quereria mostrar um contraponto entre a amizade - sem erotismo - de Henri em relação a Franck, por um lado - e, por outro, a fissura de Franck por Michel, um tesão compulsivo apesar da plena consciência do enorme perigo que outro pode representar (ou por isso mesmo)?

Nem tudo fica convincente no desenrolar dos fatos, especialmente no que diz respeito a Henri, por mais que o roteiro informe que ele estaria depressivo após o término de um casamento (hetero, diz ele) e com um passado sexual, ao lado dessa “ex”, mais – digamos- aberto, sem que ele tenha passado a curtir práticas homossexuais. Outro personagem que vem “de fora” do mundo explicitamente gay atende ao clichê obcecado de sua profissão mais nos filmes do que no mundo real. Em contraponto, os diálogos quase sempre são muito bons, assim como a narrativa visual através dos enquadramentos e da sequência das imagens através de uma decupagem bastante funcional.

------------------------------------

MANUSCRITOS NÃO QUEIMAM

por Carlos Alberto Mattos


O título é inspirado na frase de O Mestre e a Margarida, de Mikhail Bulgakov, que se referia à censura soviética. A trama desse thriller iraniano alude diretamente à perseguição movida pelos governos recentes aos intelectuais e artistas dissidentes. Um deles é o próprio diretor Mohammad Rasoulof, preso em 2010 – junto com Jafar Panahi e outros 15 – e proibido de filmar por 20 anos. Rasoulof desafiou o veto filmando clandestinamente nas ruas e estradas do país. É de clandestinidade que trata o filme, afinal. Um matador de aluguel é seguidamente contratado pelo serviço secreto do governo para eliminar escritores. Numa dessas missões, ele deve "cuidar" de autores que protegem cópias de um manuscrito que denuncia um episódio aterrador, do qual ele próprio, o matador, foi um dos portagonistas. Tais fatos teriam se desenrolado em fins dos anos 1980.

Rasoulof não espetaculariza o que não acontece como espetáculo. A ação fria e metódica dos carrascos e do mandante – este um gélido editor de jornal a serviço da inteligência oficial – é observada em detalhes excruciantes. O estilo lembra às vezes o do turco Nure Bilge Ceylan, com seu senso de paisagem e de acompanhamento minucioso da conduta corporal. Uma determinada cena de fundo simbólico assemelha-se ao banho de cachoeira de O Som ao Redor. De resto, a dicotomia muito explícita entre intelectuais vitimados e agentes do poder monstruosos pode soar um tanto maniqueista, por mais que seja impróprio aplicar esse adjetivo a semelhante conflito. O risco de abordagens desse tipo é situar na faixa da patologia um comportamento que se caracteriza, ao contrário, como mediocremente normal na prática do estado autoritário (no sentido de Hannah Arendt). De qualquer forma, este é um filme forte, audacioso e muito bem realizado. É o segundo que vejo neste festival com uma equipe formada por anônimos (depois da equipe indonésia de O Ato de Matar). Aqui, porém, embora sem nomes na tela, os atores estão expostos ao que der e vier. A eles, o distintivo da coragem.

-------------------

MARCEL OPHÜLS, O VIAJANTE

por Carlos Alberto Mattos


Há uma simpática dose de vaidade nesse projeto de Marcel Ophüls de dirigir sua autobiografia, usando como "escadas" o cinegrafista Vincent Jaglin e amigos do porte de Jeanne Moreau e Frederick Wiseman. O grande documentarista de A Tristeza e a Piedade (lançado em DVD pela Videofilmes) e Hotel Terminus assumiu para si a tarefa de deixar seu filme-testamento, no qual relembra episódios de sua vida, comenta o trabalho do pai, Max Ophüls, e suas amizades com François Truffaut, Otto Preminger etc. A vaidade responde pela extensa inclusão de Woody Allen, cujo único vínculo com ele parece ter sido a menção a Le Chagrin et la Pitié na comédia Annie Hall.

Por outro lado, é de se notar que Ophüls não dá grande destaque ao seu próprio trabalho. E deixa perguntas que não combinariam com um artista vaidoso e seguro de si: "Será que os críticos elogiaram meus filmes por ser eu filho de Max Ophüls?" ou "Será que Truffaut comeu minha mulher?". Para mim, o dado mais surpreendente de Le Voyageur foi revelar a joie de vivre de Marcel. Afinal, o autor de graves e longos docs sobre crimes nazistas foi também o diretor do sorvetinho Nouvelle Vague Peau de Banane (1963) e um cultor do cinema americano clássico e do puro divertimento. Ao se narrar neste filme, ele parece às vezes um Maurice Chevalier aposentado. Lamenta ter perdido a chance de "morrer nos braços de Bogart" quando era um jovem ator em Hollywood e faz troça da "chatice" de Antonioni. Um pândego esse Marcel. Mas saí do cinema com uma pergunta: por que ele não faz qualquer referência a Lola Montés, o último e mais famoso filme do seu pai?

-------------------

CIDADE DE DEUS – 10 ANOS DEPOIS

por Carlos Alberto Mattos


O filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund foi um marco nacional e internacional do cinema brasileiro e nutriu uma geração de novos atores e profissionais da área. Mas daí a ser um toque de Midas na vida da garotada pobre que dele participou vai uma distância considerável – que, aliás, nenhuma obra de arte consegue ou precisa ser. Avaliar essa distância é o que faz esse documentário de Cavi Borges e Luciano Vidigal, nascido a partir de uma ideia original da jornalista Maria do Rodsário Caetano. Entre os muitos exames possíveis dos efeitos de Cidade de Deus, escolheu-se aquele exercido sobre os jovens atores vindos da favela.

Usando basicamente depoimentos frontais para a câmera, o filme mapeia o choque cultural provocado pelo filme, as expectativas ingênuas de alguns, a aplicação do dinheiro recebido como cachê, o aproveitamento maior ou menor da grande oportunidade e a dura ingerência do ambiente circundante nos sonhos dos moleques. Após um início "excitante" que evoca CDD em Cannes, é como se o filme fosse aos poucos caindo na real, culminando com um libelo contra a desigualdade racial na sociedade brasileira – algo que me soa discutível quanto à adequação a este doc. A dificuldade em "sair" de CDD parece ter sido tão grande quanto a dificuldade em "ficar" na bolha dourada do grande sucesso. O encontro desajeitado entre Seu Jorge, hóspede de um hotel de luxo, e Felipe Paulino, o menino que levava o tiro no pé e hoje é aprendiz de hotelaria no mesmo estabelecimento, condensa muito bem essas encruzilhadas que tanto projetam astros como produzem pixotes.

Obs.: Na quarta-feira, haverá uma sessão do filme às 13h no Armazém do Festival, seguida de debate com os diretores, o editor e roteirista André Sampaio e a produtora Carla Osório, mediado por mim.

------------------

FEIO

por Carlos Alberto Mattos


Feio é um drama de sequestro. Indiano. E isso faz toda a diferença. O cinema indiano é pródigo em excessos de todo gênero. Feio tem excesso de subtramas, de falsas reviravoltas, de personagens secundários e terciários, de locações, de música impactante, de atuações over the top. Um excesso de excessos. A divisão por gêneros em Bollywood é brutal: Feio é filme para uma plateia masculina, que supostamente aprecia rispidez na forma e no conteúdo, um clima de constante brutalidade e violência entre policiais cínicos ou rancorosos e civis que se insinuam entre as frestas da lei e da ordem.

A menina sequestrada é filha de um candidato a ator e enteada do chefe de polícia de Mumbai. Os dois têm uma rivalidade que vem dos tempos do colégio. Daí o enredo tortuoso envolvendo policiais e gente que vive de representar, forjar e enganar. O domínio da técnica é praticamente absoluto, mas ao final dos exaustivos 127 minutos de projeção, fica a impressão de um barroquismo dramatúrgico para "engordar" um mero fait-divers na crônica do desaparecimento de meninas no país. A registrar outro excesso curioso: o de telefonemas em celular e de referências à teconologia da comunicação, cartões de crédito etc. Esse campo de interesse na Índia contemporânea é algo que o filme de Anurag Kashyap sublinha como uma obsessão nacional.

------------------

EU SOU DIVINE

Por Daniel Schenker


Harris Glenn Milstead se tornou conhecido como Divine, a musa do cinema underground de John Waters. No documentário Eu sou Divine, o diretor Jeffrey Schwarz procura traçar um retrato mais abrangente do que o já divulgado perfil desse personagem anárquico e transgressor que morreu, precocemente, em 1988, aos 42 anos.

O público acompanha Glenn/Divine desde a infância, quando vestia as roupas da mãe. Vários acontecimentos são mencionados com destaque variável: o bullying que sofreu na escola, a relação com uma namorada (entrevistada para o filme), a dificuldade e o prazer de crescer na Baltimore da década de 60, a parceria com Waters, o instante em que decide assumir a homossexualidade, o figurino extravagante e diminuto (levando-se em conta os seus 130 quilos), o momento em que ganha o mundo e se muda para São Francisco e depois Nova York e o contato com Andy Warhol e Elton John.

Determinados feitos da trajetória profissional de Divine são realçados. Entre eles, a famosa cena escatológica que protagonizou em Pink Flamingos, a interpretação de Jackie Kennedy em Eat your Makeup, a atuação como dona de casa tradicional em Polyester, a projeção internacional com Hairspray, a imitação de Jayne Mansfield. Schwarz traz à tona casos e passagens divertidos, como a revelação de que Divine e Waters assistiram a filmes de Bergman sob efeito de LSD; e a sequência em que Divine é estuprada por uma lagosta gigante. A vida e a carreira são lembradas por meio de uma sucessão de entrevistas (com Waters, a mãe e os amigos e artistas com quem trabalhou), trechos de filmes, espetáculos que realizou no circuito off Broadway e depoimentos concedidos a programas de televisão.

Existem dados interessantes levantados sobre Glenn/Divine (a tentativa de se ajustar e a posterior aceitação da própria personalidade e sexualidade, os depoimentos que garantem que nunca quis ser mulher), apesar de alguma recorrência no lugar-comum (a afirmação de que, no fundo, ele era tímido). Mas o problema maior de Eu sou Divine reside no fato de a estrutura soar repetitiva (há excesso na inserção de entrevistas) e utilizada tão-somente para informar o espectador, sem muita ambição cinematográfica.

--------------

SEDUZIDO E ABANDONADO – OS BASTIDORES DE CANNES

por Patricia Rebello


Gosta-se de filmes documentários por diferentes razões: seja porque se tem interesse em descobrir alguma coisa sobre um assunto, um país exótico, um continente distante ou um sujeito esquisito; seja porque trazem a oportunidade de descobrir processos e engenharias que colocam mundos, pessoas e mecanismos em movimento. Independente de qual destas seja a sua preferida, em ambas é sempre a mesma magia que acontece: você, espectador, se descobre modificado, pensando um pouco diferente sobre algo em que até então não tinha interesse, ou que parecia dado e resolvido.

É um pouco de tudo isso que se encontra nesse delicioso documentário de James Toback. Acompanhado pelo ator veterano Alec Baldwin, a dupla parte rumo a um dos mais prestigiosos festivais de cinema do mundo, em Cannes, em busca de financiamento para o novo projeto que reúne ambos. Entre encontros e festas com produtores e potenciais financiadores, Toback e Baldwin também conversam com diretores e atores presentes no balneário sobre “o-que-diabos-faz-com-que-todos-eles-amem-fazer-cinema”.

Muito mais que uma celebração da Sétima Arte, o filme atualiza, de maneira irreverente, o significado (e até mesmo a razão de ser) de um festival do porte e da importância de Cannes como espaço onde se revela a face dialética, “impura”, do fazer cinematográfico, uma mistura de arte e negócio, reflexão e entretenimento. Não que isso seja novo: o cinema nasceu e vingou como um modelo de negócio a partir de uma certa experiência renovada do cotidiano no começo do século XX, e conquistou legitimidade como arte pela habilidade em se desenvolver, justamente, a partir dos afetos e sentimentos que nos atravessam. Todavia, a chave da questão, o centro nervoso dessa história, é a distância que separa cada vez mais esses discursos: de um lado, produtores que não lêem roteiros; de outro, diretores divididos entre fazer “o filme do coração” e o filme possível, sempre atravessado por questões de orçamento e de patrocínio. O resultado é a percepção de uma arte contemporânea, que resiste e se reinventa no sobe e desce das Bolsas, na oscilação do câmbio e nas relações diplomáticas entre países. A ser conferido.

-----------------

THE CANYONS

por Carlos Alberto Mattos


Em The Canyons, o velho Paul Schrader continua ousado, mostrando muita nudez, surubas, banhos de sangue e gente fumando de montão. Também se lixa para psicologismo barato e conduz seus personagens a golpes rudes, sem firulas. Mas é forçoso reconhecer que a trama armada por Bret Easton Ellis é muito vagabunda: um quadrilátero amoroso nas franjas de Hollywood, com gente que tenta passar do submundo paralelo para o supermundo do estrelato. Um jovem ator encontra sua grande chance mas se vê objeto de uma armação envolvendo um psicopata e sua namorada.

A história evolui à base de canastrices do elenco liderado pelo ator pornô James Deen e a barraqueira Lindsay Lohan (a melhor em cena, aliás). O filme explora razoavelmente a paisagem e a arquitetura residencial de Hollywood, enxertando aqui e ali fotos de cinemas arruinados. The Canyons trata de uma certa decadência, personificada por gente que faz (ou tenta fazer) cinema mas não gosta de cinema. E como deve ter isso em Hollywood!

------------------------

O HORÁRIO NOBRE NO AFEGANISTÃO

por Carlos Alberto Mattos


Existem atualmente mais de 70 emissoras de TV no Afeganistão, mas a campeã de audiência é a Tolo TV, canal privado que transmite jornalismo, novelas, séries de ação, musicais e o famoso programa de calouros Afghan Star, que já mereceu dois documentários. O Horário Nobre do Afeganistão (The Network), da australiana Eva Orner, pretende fornecer uma visão geral do trabalho e da importância social da Tolo a partir, principalmetne, da palavra de seus dirigentes. Assim conhecemos essa próspera família Mohsein, que voltou do exílio na Austrália após a queda dos talibãs e decidiu contribuir para o progresso do país assumindo o seu papel de elite e "dando voz" e "educando" o povo através de um canal de televisão.

O filme soa como uma peça de divulgação da Tolo, uma vez que não oferece qualquer perspectiva divergente da de seus criadores e executivos. Não se sabe como os Mohsein fizeram sua fortuna ou conseguiram instalar esse pequeno fenômeno de comunicação no país. Não ouvimos nenhuma voz crítica ao modelo de propulsão social baseado no entretenimento, parte dele patrocinado por órgãos internacionais e a embaixada americana. A argumentação é uma só: a Tolo TV ajuda a melhorar a vida das mulheres e a trazer diversão e esperança para o povo afegão. Isso pode estar de fato acontecendo, mas se um filme elege um discurso único para apresentar – e alonga esse discurso além da conta –, bem, a gente começa a desconfiar.

---------------------

FRANÇOIS HOLLANDE NO PODER

por Carlos Alberto Mattos


Os lustres do Palácio Elysée talvez apareçam mais nesse filme do que o próprio presidente da França. Essa frequência denota como o diretor Patrick Rotman enfatizou o enfoque no cerimonial e no aparato que cerca a figura presidencial, vista quase sempre nos limites dos locais de trabalho. Le Pouvoir não é um documentário que se interesse pelos bastidores num segundo nível (os entreatos do poder e a vida pessoal), mas num primeiro nível mais superficial: as sessões de fotos com Raymond Depardon, as caminhadas pelos salões, a infinidade de apertos de mãos, a preparação das mesas de reunião ou refeição, a supervisão de discursos e ajustes de agenda etc.

Com cerca de 1 hora de filme, o estilo de Hollande já está demarcado: "amizade sim, familiaridade não"; um leve perfume de autoritarismo matizando a mensagem socialista básica. Dali em diante, o filme se estende em observações um tanto repetitivas. Como guia principal, reflexões em off do presidente, o que dá um certo tom de chapa branca. As conversas com ministros e assessores são vistas sempre pelas bordas, geralmente atendo-se às primeiras frases. Nada muito excitante, portanto, já que no período coberto (o primeiro ano de mandato) a crise econômica e a impopularidade ainda não o haviam atingido. Se é historicamente irrelevante, como revelação das coxias do poder é bem pouco atraente.

-----------------------

SAPI

por Daniel Schenker

Em Sapi, o diretor filipino Brillante Mendoza parte de uma dada situação – a concorrência entre duas emissoras de televisão, acirrada quando uma exibe imagens gravadas pela outra, em meio ao caos instaurado em Manila devido a uma chuva que sempre recomeça depois de cada breve interrupção – para contrastar as instâncias do real e do sobrenatural.

De um lado, o cineasta aborda a determinação em conquistar o primeiro lugar na audiência a qualquer custo: mostra como os profissionais, em seus cotidianos atribulados tanto nas ruas quanto no ambiente feérico das redações, não hesitam em maquiar a realidade ou em valorizar pautas sensacionalistas. De outro, apresenta lances inexplicáveis – uma cobra que subitamente surge num estúdio, um cachorro que renasce logo após ser atropelado, uma TV que liga sozinha. Não há como controlar tudo, por mais que se tente, parece dizer Mendoza através de uma câmera instável, de uma fotografia de tons esmaecidos, de uma trilha sonora acionada em momentos de descontrole ou de suspensão do real e do recurso da voz em off, que realça a atmosfera de ameaça. Atração da última edição do Festival de Toronto, Sapi, porém, bate na tela com menos credibilidade que os longas anteriores do diretor.

-----------------------

A GAROTA DE LUGAR NENHUM

por Dinara Gouveia Guimarães


Ao combinar misticismo e racionalismo, Jean-Claude Brisseau, em A garota de lugar nenhum (La fille du nulle part, França/2012), faz um filme intimista repleto de fenômenos paranormais, em meio aos diálogos tocantes sobre o alcance das crenças e ilusões humanas, aos fantasmas e barulhos bizarros pelas portas do seu apartamento onde o filme é inteiramente rodado. Nele desenvolve-se um jogo de sedução entre Michel, protagonizado pelo próprio Brisseau, e Dora (Virginie Liegeay): um professor solitário envolvido pelas ideias do livro que está escrevendo, "Análise critica de nossas crenças", encantado pelos mistérios e beleza jovial de uma desconhecida caída do céu ou pelas escadas, a vê como seu anjo da guarda e reencarnação de sua esposa morta. Assim Michel envolve-se pela conspiração sombria de uma mulher fatal, capaz de despertar seu interesse e curiosidade, e até mesmo sua paixão mais intelectual do que sensual e de desencadear estranhos fenômenos sonoros e visuais imaginários que muitas vezes escapam de um registro simbólico. Ela lhe provoca continuamente a colocar em discussão a existência de um mundo inominável, intangível e invisível para os olhos, revelador das limitações de compreensão do homem somente alcançado na arte pela súbita inspiração da epifania mística.

Quando decide fazer a sessão espírita da mesa giratória que de repente voa e quebra a organização de sua estante de livros, reencena a famosa experiência de Victor Hugo, que alegou que ele poderia falar com o espírito de sua falecida filha Leopoldina, através de mesas giratórias - dando prosseguimento à epígrafe do filme com o poema de Hugo dedicado a Leopoldina: “Eu vi um anjo branco passando sobre a minha cabeça”. Mas por que efetivamente interpretar a mulher assim? Por esta visão o diretor altera certa concepção da noção de Deus. É um Deus sustentado pelo erotismo feminino. O resultado é uma obra de beleza celestial, calor e ternura, onde mostra como são os efeitos aparentemente ingênuos, artesanais os que melhor refletem o ilusionismo inato do cinema. É Brisseau recriando Méliès, ressaltando um elemento do cinema que é muito mais complexo do que o mero escapismo evocado com Van Gogh citado no final do filme: “Eu posso na vida e na pintura também, me passar por um Bom Deus, mas eu não posso me passar por alguma coisa maior que eu, que é minha vida, a potência de criar.” O filme nos deixa a pergunta: Deve-se amar aquele que está morto? Um problema conexo com o interdito em seu papel no funcionamento do desejo.

---------------------

CATIVAS - PRESAS PELO CORAÇÃO

por Carlos Alberto Mattos


O filme de Joana Nin é muito pouco do que se espera de um documentário sobre o mundo penitenciário. Não se fala em crimes nem de rotina carcerária, não há depoimentos sobre justiça ou violência. O que temos são sete diferentes histórias de amor vividas entre mulheres livres e presidiários na periferia de Curitiba. Joana avançou e ampliou uma pesquisa que havia resultado no premiado curta Visita Íntima (2005). São novas as personagens e diversificadas as situações em que o amor, o companheirismo e a dependência mútua se sobrepõem ao fardo das culpas, aos preconceitos e à barreira das grades da prisão.

O acesso da diretora à intimidade de suas personagens é notável, chegando mesmo a filmar um casamento no presídio, o encontro sexual de um casal e a comovente primeira visita de uma jovem ao seu namorado. O eixo condutor do filme são as cartas de amor, curiosamente recheadas de desenhos românticos, uma espécie de Halmark carcerário. Embora não trate diretamente da questão,Cativas acaba chamando atenção para a importância dos laços afetivos na humanização do sistema penitenciário e na perspectiva de reinserção social dos presos. Mais que tudo, porém, é um irresistível filme de amor, popular e – desculpem o termo – cativante.

P.S. Amanhã, segunda 30/09, após a sessão de 13h no Armazém do Festival, eu vou mediar um debate com a diretora Joana Nin, a montadora Jordana Berg e o produtor de finalização Ade Muri. Entrada franca.

--------------------

APENAS DEUS PERDOA

por Luiz Fernando Gallego


Apenas Deus Perdoa, de Nicolas Winding Refn, (superestimado por Drive) é uma indigesta salada de imitações “estilísticas” extraordinariamente infelizes do pior de David Lynch com molho (azedado) de Takeshi Kitano. O resultado é ainda pior do que o pior Kim Ki-Duk querendo ser Wong Kar-Wai, mas colocando a Kristin Scott Thomas no papel de Susana Vieira com cabelão louro escorrido e tudo mais em cima - ou em baixo, sabe-se lá.

A pornô-violência gratuita nem é o que incomoda mais nessa pretensão bizarra que faz a plateia mais rir do que se horrorizar. Poucas vezes o ridículo involuntário foi tão longe. Não vale perder mais tempo escrevendo mais sobre isso. É isso.

-------------------------

INVADINDO BERGMAN

por Luiz Fernando Gallego


O que gente do cinema tem a dizer sobre Ingmar Bergman e sua obra? O que diriam - dentre outros - Francis Ford Coppola, Takeshi Kitano, Robert De Niro, Martin Scorsese, Alejandro González Iñárritu, Claire Denis, Michael Haneke, Wes Craven, Ang Lee, Isabella Rossellini, Harriet Andersson, Zhang Yimou, Laura Dern, John Landis, Holly Hunter, Wes Anderson, Lars von Trier, Ridley Scott, Lena Olin, Pernilla August, Thomas Vinterberg e – claro! - Woody Allen? Como muitos deles reagiriam ao conhecer a casa onde o cineasta viveu durante tantos anos na Ilha de Farö? Que depoimentos pessoais confessariam a uma câmera sobre o impacto dos primeiros filmes que assistiram, dentre os realizados pelo colega sueco? Como veem sua obra com o passar do tempo e já seis anos depois de sua morte?

O crítico de cinema Hynek Pallas teve a ideia de correr atrás dessas respostas e co-dirigiu com Jane Magnusson uma série para a TV em seis episódios com toda essa turma (e alguns mais), vários deles visitando a ilha onde Bergman situou inúmeros de seus filmes, entrando na casa que ele construiu para morar, perscrutando sua biblioteca e videoteca (onde se encontra, por exemplo, Duro de Matar), sentando na mesa do escritório - e ainda descobrindo em paredes, mesinhas ou portas rabiscos com anotações a lápis ou caneta pilot usada para desenhar coraçõezinhos e números em série que sugerem décadas de 71, 72, 73 em diante... mas com a de ‘95 riscada com um ‘x” (e por que?), etc etc etc...

Todo cinéfilo que se preze conhece o dístico “No trespassing” em uma tabuleta presa à grade que cerca o palácio “Xanadu” onde havia se isolado até a morte Charles Foster Kane, o Cidadão Kane da primeira obra e obra-prima de Orson Welles (que Bergman não apreciava). Talvez por essa advertência que abria o filme de Welles, o documentário resumido da série de TV, com 107 minutos que iria se chamar originalmente “Berman’s Video” ficou com o título definitivo de Trespassing Bergman - renomeado no Festival do Rio como Invadindo Bergman, “invasão” que a diretora Claire Denis não consegue levar adiante, sentindo-se até mesmo mal e precisando sair para ser entrevistada no jardim. Já John Landis xereta e descobre filmes trash de terror e Emanuelle na videoteca, enquanto Iñárritu reage emocionalmente com exagero latino, parecendo sincero e teatralmente hiperbólico ao mesmo tempo.

Os comentários e depoimentos acabam por dizer mais sobre quem fala do que sobre quem é tema das perguntas e respostas dadas: é assim que a reverência de Woody Allen e Scorsese demonstra também a inteligência e o olhar acurado desses cineastas enquanto a compulsão de Von Trier pour épater o leva a uma fala escatológica e vários comentários grosseiros, além de franca demonstração de inveja de Vinterberg por este ter tido contacto pessoal com Bergman - escancarando a mágoa por nunca ter visto respondidas as muitas cartas que enviou a Ingmar.

Por outro lado Ang Lee faz – talvez – o depoimento mais humilde e menos pretensioso, sendo comovente a sua fotografia, abraçado a Bergman que vemos ao término do documentário. Wes Andersson parece bobinho, Payne é desinteressado e desinteressante, Landis se contradiz em diferentes momentos, Wes Craven e Ridley Scott podem surpreender na admiração por uma obra tão diferente da que eles vem realizando, assim como podem surpreender as três atrizes que nunca trabalharam com o cineasta.

Há ainda interessante material de arquivo com fotos ou filmes por trás das câmeras, quando podemos ver a habilidade do diretor ao descontrair o ambiente nas primeiras cenas que ensaiou e rodou para Fanny e Alexander; e ainda provocam curiosidade ao revelar figurantes e atores de O Sétimo Selo rindo abertamente durante as filmagens em contradição com o tema sombrio do conhecido enredo.

Alguns poucos filmes capitais tem cenas brevemente reproduzidas e comentadas pelo entrevistado da vez - e o maior problema deste documentário ser visto em um festival é que dá vontade de largar tudo para só ficar vendo e revendo os filmes do cineasta.

-------------------------

JOVEM E BELA

por João Oliveira


Uma análise sobre a crise da adolescência.

O novo filme de François Ozon conta a historia de uma bela adolescente de 17 anos, Isabelle, que decide se prostituir para ganhar um pouco de dinheiro. Ao contrário de muitas estudantes de sua idade que optam pela prostituição para pagar os estudos ou para comprar roupas ou objetos de marcas famosas, ela faz isso quase por tédio, revolta, rebelião juvenil e um pouco de curiosidade, visto que ela é filha de uma médica que lhe satisfaz todos os desejos materiais.

O início como prostituta acontece quase por acaso. Um dia, saindo do liceu onde estuda (o Henry IV, um dos melhores da França, localizado no centro de Paris), ela e sua melhor amiga são abordadas por um homem mais velho que lhes propõe um pouco de dinheiro em troca de sexo. Elas recusam, mas ele deixa o telefone que Isabelle guarda na memória para depois ligar.

Linda e sensual, o rosto angelical, a jovem prostituta inscreve-se num site e adota o pseudônimo de Léa, que é o nome de sua avó materna. Mostrando apenas o corpo escultural, ela não tarda a receber algumas ligações. Tudo corre perfeitamente bem, sem que ninguém de sua família ou do círculo de seus amigos desconfiem de sua vida dupla, até que ocorre um incidente e a polícia acaba denunciando tudo à sua mãe. A máscara cai, mas a menina, cada vez mais provocadora, não parece arrependida de nada do que fez e tem dúvidas quanto ao seu futuro de prostituta. Em um determinado momento, de clara revolta juvenil e enfrentamento da mãe, que também não possui uma reputação tão ilibada quanto quer fazer crer, ela tenta seduzir o padrasto. Neste momento Ozon demonstra toda a perversidade e o narcisismo da adolescência, tema que já esboçara em seu filme anterior, Dans la maison (Dentro de casa).

O filme fará os brasileiros pensarem em Bruna Surfistinha. Mas apesar da temática parecida e de algumas semelhanças (a idade das personagens, o fato de ambas serem de classe média, a presença de um irmão), trata-se de duas obras completamente diferentes. O filme de Ozon é sobre a crise da adolescência, sobre o jogo da sedução dos adolescentes, sobre o fato de que não se é sério quando se tem 17 anos, como diz o poema de Rimbaud interpretado e analisado por estudantes do liceu no qual a protagonista estuda. No filme de Marcus Baldini, o problema é abordado pelo viés social e psicológico. O mal estar existencial de Bruna no seio de uma família da qual ela se sente excluída, de sua dificuldade em se relacionar com as outras pessoas e o desejo de ser financeiramente independente, de ser dona de sua própria vida. Assim, embora esteticamente os dois filmes sejam muito pobres, no filme francês, cujas cenas de sexo são mais poéticas e a vontade de representar o conflito da adolescente como um problema natural da fase de transição para a idade adulta é mais explícito, a prostituição é o caminho da provocação, da descoberta da sexualidade, da curiosidade, da aventura, da inconsequência e da inconsciência juvenis, enquanto no segundo, escapista, ele é o caminho consciente da emancipação familiar.

Na realidade, a personagem do filme de Ozon parece mais próxima da personagem burguesa Séverine Sérizy (Catherine Deneuve) do filme de Louis Bunuel, La belle du jour, com o qual o filme abre um dialogo à distância e ao qual ele parece prestar uma pequena homenagem, sem, contudo, que os personagens tenham a mesma dimensão dramática. Aliás, há um momento no filme em que essa homenagem parece clara, quando um cliente pergunta sobre a sua disponibilidade e a jovem afirma que só trabalha durante o dia, tal como o personagem de Deneuve, que só se prostitui à tarde, e a flor que dá titulo ao filme do cineasta espanhol (que floresce apenas durante o dia). Nesse sentido, a conversa final entre Isabelle e a personagem de uma burguesa, viúva de um de seus ex-clientes, interpretada por Charlotte Rampling, que confessa sentir uma certa inveja da opção feita pela jovem, bem poderia ser um diálogo entre as personagens dos filmes de Ozon e de Bunuel (antes de Séverine começar à se prostituir).

O filme é dividido em quatro partes ; cada uma associada a uma estação do ano e a uma etapa da vida da personagem. O Verão simboliza a descoberta da sexualidade ; o outono, sua iniciação na prostituição ; o inverno, a descoberta e a interrupção de sua dupla vida e a primavera, o desejo de recomeçar tudo outra vez. Até mesmo nessa pequena subdivisão a escolha do filme revela-se convencional e acadêmica.

O personagem de Isabelle é interpretado pela jovem atriz e ex-modelo Marine Vacht que, apesar dos 23 anos e de ter participado de apenas quatro filmes, incarna sem comprometer a introspectiva adolescente de 17 anos, cujas aventuras e silêncios são pontuados por algumas belas canções românticas da cantora francesa Françoise Hardy, que às vezes funcionam quase como um monólogo interior da personagem, em suas dúvidas e questionamentos.

François Ozon é um cineasta inconstante com uma cinematografia disparatada que alterna bons e maus momentos. Nas intrigas de seus filmes, conduzidas quase sempre por personagens femininos, aparecem invariavelmente o sexo (ou questões ligadas à sexualidade) e os conflitos familiais no seio de uma certa burguesia francesa. Temas que estão presentes em Jovem e bonita, cuja direção é excessivamente acadêmica com uma utilização abusiva de repetitivos zooms-in combinados ou substituídos por travellings-in para atingir o close sem que isso seja justificado dramaticamente ou acrescente algo de novo à sintaxe narrativa do filme. Assim, se de um lado a narração dá a impressão de não partilhar das escolhas de sua personagem, preferindo manter-se à distância, filmando-a de costas, a repetição desses planos próximos e frontais, quase teatrais, transmite uma sensação contrária, revelando uma instância narrativa desejosa de sentir-se o mais próxima possível de sua personagem, a fim, muita provavelmente, de tentar decifrá-la ou de se solidarizar-se com ela.

--------------------

ALABAMA MONROE

por João Oliveira


Um filme forte sobre as dificuldades de aceitação da perda e do fato de que a vida nem sempre é generosa.

O filme belga Alabama Monroe (The broken circle breakdown), do diretor Felix Van Groeningen, narra a historia de amor entre Didier (um tocador de banjo apaixonado pelos Estados Unidos, líder de um grupo de bluegrass, um tipo de musica country, cujo visual lembra o Kris Kristofferson mas também o Barry Gibb dos Bee Gees) e Elise (uma super tatuada proprietária de uma loja de tatuagens, mulher jovem, alegre, franca, independente, moderna e cheia de vida que termina entrando para o grupo como cantora) e o inferno no qual se transforma a vida deles depois da doença da filha Maybelle (uma homenagem à cantora country Maybelle Carter).

Adaptação de uma peça de teatro de Johan Heldenbergh (o intérprete de Didier, que já trabalhara no ótimo filme anterior do diretor chamado La merditude des choses) e Mieke Dobbels, o filme pode ser dividido em três partes diferentes. A primeira narra a vida amorosa do casal, da primeira noite à descoberta da gravidez involuntária, passando pelos preparativos para a chegada da criança e a felicidade da vida em família com o nascimento da menina que vira logo o xodó de todo mundo, transformando e iluminando o universo em torno do pequeno grupo. Sobretudo de Didier, um homem solitário e um pouco rústico que vivia como um cowboy em um motor home no meio rural. No início ele demonstra hesitação perante a possibilidade da paternidade e provoca um primeiro e rápido estremecimento na vida do casal, mas rapidamente ele se transforma em um pai atencioso e em um marido dedicado.

A segunda parte representa a descoberta do câncer (uma leucemia) de Maybelle aos sete anos e a luta dos médicos e da família para salvá-la. As imagens são fortes, duras, violentas e realistas.

A terceira parte é sobre a crise do casal. Do amor contagiante da primeira parte, o casal mergulha em uma espiral agressiva e autodestrutiva na busca de um culpado inexistente que talvez permitisse uma canalização, uma válvula de escape para suas dores respectivas e possibilitasse um princípio de explicação para algo inexplicável.

Como a narrativa não é linear, essas três partes são entremeadas, representadas alternadamente e fora de qualquer ordem, com idas e vindas no tempo, misturando as tonalidades emocionais do filme e evitando o dramalhão sem cair em um maneirismo gratuito e insignificante. O filme começa no presente, com o anúncio da doença da filha, e volta sete anos antes. Nas cenas que representam os momentos anteriores à crise do casal, a diferença entre o presente e o passado é representada pela tonalidade da fotografia e pelo tipo de enquadramento. No passado predominam as cores quentes, particularmente o amarelo que incarna o romantismo e a paixão avassaladora do casal. Ha muitas sequências no exterior, em meio à natureza, com muita profundidade de campo de maneira a acentuar a sensação de liberdade e de infinitude. O presente é marcado pelas cores frias do hospital e os planos são mais fechados, sem profundidade, simbolizando a clausura e a falta de perspectiva dos personagens, enredados no drama familiar.

Durante a crise, enquanto Didier, um ateu e evolucionista convicto de que a existência se encerra com a morte, submerge numa espécie de radicalismo antirreligioso de caráter esquizotímico e encontra um culpado ideal para suas dores no conservadorismo dos criacionistas americanos e no veto de George Bush ao financiamento das pesquisas sobre as células-tronco por motivos religiosos, Elise finge encontrar conforto na fé e na possibilidade de vida pós-morte. Pensando ser possível mudar de vida e apagar o passado como ela apaga os nomes de seus ex-namorados tatuados em seu corpo, ela muda de nome e passa a se chamar Alabama. Assim, o que antes da doença da filha parecia complementar vira um antagonismo inconciliável. Nesta parte, a instância narrativa reduz consideravelmente os indicadores de tempo e mistura presente, passado e até mesmo o futuro de maneira a melhor simbolizar a desorientação do casal e o pessimismo quase fatalista do filme, que é pontuado e ritmado por diversos números musicais inteligentemente incorporados à narrativa. Dessa forma, as músicas, que abordam temas diretamente ligados à intriga do filme e variam segundo o humor dos personagens, acabam funcionando como uma espécie de coro grego que comenta e analisa a ação.

A atuação dos três atores que constituem o núcleo familiar (a atriz e cantora Veerle Baetens, o ator e dramaturgo Johan Heldenbergh e a jovem atriz Nell Catrysse, transbordante de talento, particularmente na curta cena da morte do pássaro, na qual ela dá um show) é excepcional e extremamente convincente.

Melodrama que alterna com maestria momentos de alegria e de tristeza com algumas pitadas de humor sem jamais cair no dramalhão, Alabama Monroe é uma reflexão pungente, metafisica e de grande sensibilidade sobre o amor, o sentimento de perda e o peso da religiosidade (ou de sua ausência) na vida das pessoas.

---------------------

BLUE JASMINE

por João Oliveira


Em seu livro Manuscritos de 1844, Karl Marx, preocupado com o poder destruidor do vil metal, perguntava-se "se o dinheiro é o vínculo que nos liga à vida humana, que nos conecta à sociedade, à natureza e ao homem, se ele não seria o vínculo de todos os vínculos ? Se ele não poderia desatar e atar todos os vínculos ? Se, deste modo, ele não seria um meio universal de separação ?"�

Esta frase de Marx, acrescida do ditado "mentira tem pernas curtas", poderia servir de epígrafe para Blue Jasmine, o novo filme de Woody Allen que narra as dificuldades existenciais, sociais e morais encontradas por Jasmine depois que as falcatruas de seu marido foram descobertas e ela viu-se repentinamente desabrigada.�

Jasmine é a própria incarnação do sonho americano. De criança adotada, ela passa a viver em apartamentos e casas luxuosas, organizando recepções mundanas e gastronômicas para dezenas de convidados, vestindo roupas e portando objetos de marcas, viajando de primeira classe, hospedando-se em hotéis de luxo, em casas de pessoas importantes ou velejando na Riviera Francesa. Tudo com o qual sonha a maioria da população americana, pais da cocanha onde, reza a lenda, uma vida de sonhos e facilidades é possível para todos aqueles com alma empreendedora e espírito vencedor.�

Mas o conto de fadas dura pouco. O marido, um financista inescrupuloso que vivia com o dinheiro dos outros, é denunciado ao FBI e tem todos os seus bens imediatamente confiscados pelo Estado americano. Abandonada e desamparada, vivendo à base de calmantes, antidepressivos e álcool, a personagem vê-se obrigada a recorrer à sua irmã Ginger (também adotiva), uma simples caixa de supermercado cuja pobreza, simplicidade e conformismo ela sempre desprezou (e continua desprezando) e cuja única possibilidade de uma vida melhor foi destruída justamente por ela e por seu marido escroque. �

Além disso, Jasmine não gosta do namorado pobre e simples de sua irmã e tenta convencê-la de que ele é um "looser" e que ela merece algo melhor. Representação sutil do conflito de classes, Jasmine despreza sobretudo o que sua irmã e seu namorado simbolizam : a pobreza e a simplicidade do operariado. Isso porque, muito provavelmente, eles lhe fazem lembrar do universo de onde ela provém e no qual ela se encontra, mas do qual gostaria de sair o mais rapidamente possível.�

Arrogante e egoísta, ela atravessa todo o filme sem nunca agradecer ou se desculpar com Ginger. Ignorando ou não querendo enxergar a dura realidade, ela continua a tratar as pessoas como seus serviçais, como seres inferiores e incapazes, como verdadeiros perdedores. Da mesma forma fraudulenta que seu marido administrava o dinheiro de seus clientes, ela tenta manipular a vida de sua irmã que, por pouco, não sofre uma segunda decepção em razão de seus maus conselhos.�

Quando o filme, que é narrado em flash back, começa, o castelo de areia no qual viviam Jasmine, seu marido e o filho dele, estudante da Harvard, já desmoronou, mas ela, cujo nome verdadeiro é Janette, prefere insistir na permanência de um mundo de mentira, de um passado que já não existe mais e que a conduz à solidão, à depressão nervosa e à esquizofrenia. Assim, embora não tenha onde cair morta e dependa da ajuda da irmã, ela continua detestando a vida operária, viajando de primeira classe, utilizando malas, bolsas e carteiras Louis Vuitton com seu nome gravado e distribuindo boas gorjetas afim de manter a pose aristocrática. Como a flor que inspira o seu falso nome, ela vive inteiramente voltada para os aspectos cosméticos e materiais da vida.�

A fim de corroborar essa confusão entre o presente e o passado na qual vive a personagem, os flashbacks são mostrados sem que haja um diferenciador temporal. Assim, o diretor utiliza para os dois momentos a bela luz amarelada, presente em muitos de seus filmes, produzida pelas lentes e filtros do diretor de fotografia espanhol Javier Aguirresarobe, com quem ele ja trabalhara em Vicky Cristina Barcelona. Os  flashbacks surgem como uma imagem mental de Jasmine e, na maioria das vezes, por uma razão determinada, por um dado qualquer do presente que remete ao passado. Inicialmente, o passado aparece como reminiscência de uma época que não existe mais, mas que ela gostaria de perpetuar, como parte da confusão mental da personagem. Num segundo momento, os flashbacks tornam-se menos frequentes e o passado surge de forma menos glamourosa, como algo de negativo que deve ser esquecido e não mais revivido. É quando, passando de manipuladora à manipulada, ela vê-se obrigada a mentir uma outra vez não com o intuito necessariamente de enganar, mas de apagar o seu passado execrável, de se reinventar. Todavia, uma vez mais a verdade emerge para desestabilizar o seu universo e, numa condenação quase moral e inexorável da instância narrativa, negar-lhe a possibilidade de reerguimento social e moral.�

Se o roteiro correto, com seus diálogos deliciosos, eficazes e próximos de um certo realismo, não possui a originalidade de outros filmes do diretor (além de parecer ter sido vagamente inspirado pela historia de Madoff, o renomado operador de Wall Street, o personagem do marido, um financista desonesto e adúltero, a relação familiar e o caráter vingativo e revanchista de seu desfecho lembram vagamente o filme A negociação, dirigido por Nicholas Jarecki. O motivo que culmina na separação do casal lembra ainda, numa espécie de processo autoderrisório, à própria vida do diretor), a direção é impecável.�

Os atores, particularmente Cate Blanchett e Sally Hawkins, estão maravilhosos. A primeira está simplesmente divina. Ela conduz o filme do inicio ao filme e incarna o seu personagem com muita precisão e justeza, como se ele tivesse sido escrito sob encomenda para ela. Impossível, depois de ter assistido ao filme, imaginar uma outra atriz para o papel. Os figurinos que ela utiliza são bonitos, elegantes e sublinham uma forma e uma beleza pouco valorizadas em seus filmes anteriores. Ela está mais parecida com Katharine Hepburn do que no filme Aviator, de Martin Scorsese. É necessário retornarmos a 1988 e ao personagem de Gena Rowlands no filme Another Woman (A Outra) ou a 1990 e o personagem de Mia Farrow no filme Alice (Simplesmente Alice) para encontrarmos personagens femininos com a mesma intensidade dramática de Jasmine.

A utilização dos espaços e das lentes também é digna de nota. O passado aparece quase sempre em planos gerais com os personagens filmados em grandes espaços, quase sempre no exterior e com muita profundidade de campo. No presente, os espaços são mais exíguos, saturados, os planos são mais fechados com pouca ou nenhuma profundidade e majoritariamente no interior. Assim, os espaços conotam a separação de classes no seio do filme, servindo também para opor uma Nova Iorque burguesa e irreal a uma São Francisco operária e realista. Desta maneira, associados à opulência e ao passado burguês da personagem, as amplitudes espaciais só reaparecem no presente quando Jasmine encontra um novo namorado rico e a vida parece reconciliar-se com ela.

Um dos raros pontos fracos do filme concerne a construção dos personagens mais pobres, representados como muito simples, impulsivamente agressivos e excessivamente românticos que adoram, como um Homer da vida, embriagar-se diante da televisão enquanto os filhos obesos e mal-educados gritam pelos corredores. Ainda assim, essa surpreendente falta de nuances pode ser percebida como um ponto de vista de Jasmine e da classe que ela representa.

O filme, que mistura com perfeição momentos cômicos com momentos dramáticos, é uma excelente tragicomédia no melhor estilo de seu diretor. Mesmo sendo extremamente impiedoso com o mundo inescrupuloso da finança e com uma certa burguesia mundana, Blue Jasmine, que marca o reencontro de Woody Allen com seu país natal e com aqueles personagens de mulheres melodramáticas que ele tanto adora, não é nem um pouco maniqueísta. Na luta pela realização do sonho americano de uma vida luxuosa e confortável através dos ganhos fantasmagóricos acima da média prometidos pelos financistas, ninguém é totalmente inocente ou vítima quanto gostaria de fazer crer.�

-----------------------

AUDIÊNCIA PÚBLICA

por Carlos Alberto Mattos  


As experiências na fronteira entre ficção e documentário são mesmo a linha-mestra do cinema contemporâneo. Public Hearing, com esse título que soa a Frederick Wiseman, é a reconstituição de uma audiência pública sobre um projeto de expansão do hipermercado WalMart numa pequena cidade americana. O filme de James N. Kienitz Wilkins coloca atores para interpretar (lendo mais ou menos dissimuladamente) a transcrição literal da audiência, ao mesmo tempo em que usa a montagem para simular um olhar que vagueia por detalhes da plateia. Isso gera algum humor na aridez do procedimento, mas não chega a se comparar com uma comédia de David Mamet, como já disseram por aí.

Filmado em 16mm, preto e branco e todo em closes, com um uso realista do microfone e até 5 minutos de intervalo em tempo real, esse experimento pretende mostrar um exemplo do exercício da democracia à americana num momento emblemático: empresários, políticos e cidadãos argumentam contra ou a favor de um empreendimento que coloca em risco a economia e mesmo a cultura locais. Esse seria o "american spirit", como cita um maço de cigarros manipulado por alguém. A transformação de "small towns" em "big cities" seria idealmente decidida em audiências como aquela – e cabe a esse filme transformar o evento num pequeno espetáculo sobre as tecnicalidades, o sentimentalismo e, afinal, a ineficácia do "teatro democrático". Pois basta ver na internet que o Supercenter WalMart foi de fato construído em Allegany, NY.

-------------------

O ESPÍRITO DE 45

por Luiz Fernando Gallego

Realizado com extenso material de arquivo sobre o Reino Unido dos anos 1930 (para caracterizar o que foi o período entre as duas guerras) e, principalmente, sobre a ascensão e ação do Partido Trabalhista entre 1945 e 1951, este documentário do diretor Ken Loach, mais conhecido de nosso público por seus dramas politicamente engajados à esquerda, não foge ao ideário do cineasta.

De 1951, ele salta para a imagem de Thatcher em 1979, denunciando o desmonte do Estado pelas privatizações dos serviços públicos que haviam sido estatizados no pós-II Guerra. No presente, Loach parece esperar que, pelo menos, o Serviço Nacional de Saúde possa preservar o que teria de melhor e voltar atrás nas mudanças sofridas desde Thatcher.

Dando voz a um mesmo grupo de pessoas, Loach como que fala por elas, concordes com suas idéias. A questão é que as mesmas coisas são ouvidas mais de uma vez, especialmente nos trechos finais, deixando a impressão de que o cineasta e seu montador habitual, Jonathan Morris, não conseguiram abandonar algumas falas na sala de edição. Com isso, o já frequente didatismo de Loach (traço menos feliz em alguns de seus filmes) deixa esta realização prolixa e repetitiva.

O material de arquivo é riquíssimo e surge muito bem editado, sendo o ponto alto deste interessante documentário – aliás, interessante até certo ponto, pois seu desfecho pesa um pouco, pois é esticado além do necessário. O recado já estava dado de modo claro: o “espírito de 45” do título é o de união com ideais socialistas dentro de uma nação ocidental de fortes traços conservadores – aos quais o thatcherismo teria trazido um aspecto perverso no sentido da ênfase ao indivudalismo e ao lucro acima de tudo em oposição à noção de bem comum e ao espírito de união que teria sido a marca da transformação da Inglaterra no período mais enfocado pelo filme. Vale admirar mais este esforço sincero de Loach, ainda que parcialmente reiterativo.

-----------------------

NEBRASKA

por Luiz Fernando Gallego

Geralmente esnobado por uma parte da crítica cinematográfica, o diretor Alexander Payne tem alguns títulos simpáticos em sua carreira, como o já antigo Ruth em Questão (1996) e As Confissões de Schmidt (2003), baseado em romance de Luiz Begley e que contou com um dos grandes momentos de Jack Nicholson (naquela que foi sua última indicação ao Oscar até o presente). Mas o público talvez se recorde mais de Sideways – entre umas e outras (2004) e de Os Descendentes (2011) que deram ao diretor dois prêmios Oscar de roteiro.

Para este NEBRASKA, Payne não escreveu o roteiro – que por sua vez não é baseado em outra fonte; é a primeira vez que ele dirige um roteiro original desde Ruth em Questão , que tinha Laura Dern, filha de Bruce Dern no papel- título. E é Bruce, premiado como ator em Cannes este ano, o maior atrativo de NEBRASKA

Lembrado por papéis marcantes em participações coadjuvantes dos anos 1970 (Amargo Regresso, O Grande Gatsby, 1978 e ’74, respectivamente), Dern talvez leve até um Oscar em um papel do tipo que a Academia de Hollywood adora premiar: o de gente idosa, como foi o caso de Jessica Tandy em Conduzindo Miss Daisy (1989). Mas este personagem, Woody Grant, parece ter sido desenhado desde o roteiro com poucas nuances, limitando-se quase que a um tipo característico: o velhinho já meio demenciado com acréscimo de uma personalidade prévia nada simpática (alcoólatra e pouco ligado em seus filhos). Dentro de tais restrições, Bruce Dern até se sai bem, mas o prêmio em Cannes soa um pouco exagerado. Teriam aproveitado para dar um prêmio que destacasse o filme? Esta hipótese então soa totalmente exagerada para um produto que faz gracinhas com velhinhos irreverentes até a falta de educação e perda de crítica (e nisso está incluída a personagem da mulher de Woody, vivida pela histriônica June Squibb; no Brasil, o papel quase poderia ser de uma Dercy Gonçalves, estivesse viva); para piorar, o filme também oscila em direção a uma dose –moderada que seja - de pieguismo.

O melhor fica por conta do retrato (caricatural - ou não?) dos tipos de uma cidade interiorana norte-americana, com destaque para os personagens cômicos dos primos de David, o filho submisso ao pai que, segundo outro irmão, o mais velho Ross (Bob Odenkirk), não mereceria tanta atenção de David (Will Forte, em outro personagem bidimensional ao qual o ator tenta dar alguma interioridade, especialmente na breve cena em que reencontra sua obesa ex-companheira e quando vai sendo informado de detalhes quase escabrosos do passado de seus pais).

A fotografia em preto-e-branco na tela larga, de Phedon Papamichael - que vem colaborando nos últimos filmes de Payne - dá um toque de elegância que o filme não sustenta em seus 115 minutos esticados com um trecho road movie dispensável. Desta vez, Payne dá razão à crítica que o menospreza.

-----------------------

THE WAY, WAY BACK / O VERÃO DA MINHA VIDA

por Gabriel Papaléo


Ator da cultuada Community, Jim Rash é também conhecido por seus roteiros de séries de TV (como para própria Community). Com Nat Faxon, também roteirista e ator, tem aqui sua primeira incursão como diretores em The Way, Way Back -que ainda não tem título brasileiro bem definido: no Festival consta como O Verão da minha vida, mas no IMDb surge como Um Verão para não esquecer. É um trabalho charmoso, com domínio da linguagem cinematográfica por parte de seus diretores: ainda que não passe incólume, conseguem utilizar clichês com dignidade.

O roteiro segue Duncan, adolescente tímido e entediado, que terá que viajar com sua “nova família”, a qual inclui o namorado de sua mãe, Trent, e sua filha. No verão do lugar, ele vai passar pelo processo de amadurecimento de que precisa. É um coming-of-age em todas as suas nuances – e os diretores não procuram fugir disso -, desde seus personagens arquétipos (o padrasto escroto, a menina alternativa, a patricinha, o sábio mentor do jovem, a mãe dispersa) até seu desenrolar dos fatos, que em nada subverte a narrativa comum dos filmes-de-amadurecimento americanos. O clima tropical, com os conflitos de mais uma família disfuncional, chega a lembrar Os Descendentes - um filme roteirizado pela dupla, vale lembrar.

Os fatores que tornam o filme diferenciado, no entanto, são o tom leve da produção, bastante feliz em seus pontuais alívios cômicos e conferindo um descompromisso eficiente, assim como o desenvolvimento de personagens e o bom ritmo da narrativa. O desenvolvimento mais bem apresentado é o de Trent, personagem vivido por um contido Steve Carell, já demonstrando seu caráter duvidoso de primeira. Enquadrado pelo espelho do carro em seu primeiro take, como uma figura opressora aos olhos de Duncan, o simples personagem se tornará o maior obstáculo para o amadurecimento do reprimido menino. Sua filha se faz apenas uma alegoria, um arquétipo ambulante, mas a relação de pai-e-filha serve bem para contraponto com a relação de Duncan e sua mãe, Pam.

Pam, por sinal, se revela o maior trunfo dramático de Rash e Faxon. À primeira vista, a personagem parece apenas uma representação de mãe distante para Duncan. Porém, através de sutilezas em cena, a mulher se torna bem mais interessante, digna de discussão. Ao contar sua história sobre uma duna, Pam não arranca os risos que seus amigos conseguiram contando suas experiências. Durante o jantar, ela é enquadrada de longe, com uma iluminação sutil, como se fosse distante não apenas de Duncan, mas de todos ali. É uma outsider como Duncan, afinal, o que justifica bastante suas ações com o filho. É ao longo da narrativa que Pam vai tomando consciência disso (com a ajuda do menino), e se esforça para não apenas se misturar aos outros. O paralelo entre os “dois” coming-of-age (de Pam e de Duncan) se amplia mais quando a personagem de AnnaSophia Robb fala sobre a tendência do lugar transformar adultos em crianças novamente (“it’s spring breaks for adults”), um questionamento bem contemporâneo. E bem embasado pelos roteiristas, que demonstram entender bem algumas dessas estruturas emocionais modernas daqueles seres humanos.

A noção de carpintaria dramática dos diretores é notável, também, em outras situações. No primeiro ato, Duncan reclama com alguma constância do lugar, da praia, do calor. Seria válido desenvolver a maturidade do protagonista num local bucólico, como a própria praia, mas Rash e Faxon resolvem com certo brilhantismo a questão: elegem um parque aquático para ambientar as descobertas do menino. Um ambiente bucólico, mas que nunca deixa de ser artificial; a representação perfeita para um início de amadurecimento para Duncan.

Ainda assim, The Way, Way Back não consegue fugir de suas limitações e utiliza soluções fáceis de filmes do gênero. O amadurecimento do personagem soa didático por vezes (Sam Rockwell não precisava dizer duas vezes o chavão “Ache seu próprio caminho!”), as piadas, vez ou outra, não funcionam. Ver uma AnnaSophia Robb distante, lendo na praia e conhecendo aquela música diferente, é um clichê indie dos mais manjados; tampouco eficiente é a ideia de mostrar Duncan divagando na praia. Além disso, adolescente andando de bicicleta infantil não é a melhor das gags – tudo embalado por uma trilha correta, mas comum, de Rob Simonsen.

São tais características que deixam o filme imperfeito. Mas devido à completa honestidade da proposta de Rash e Faxon, The Way, Way Back termina sendo agradável, um bom estudo de personagens através de uma narrativa alegre, divertida. Não tem o ambicioso alcance dramático e a construção absurdamente precisa de Mud (um coming-of-age que funciona em diversos níveis), mas é menos pretensioso e mais competente que Os Descendentes. Rash e Faxon não só meramente contam sobre como chegar à vida adulta, mas criam pessoas que vivem e sentem isso de verdade.

-----------------------

A ESTAÇÃO DE RÁDIO

por Patricia Rebello


Uma das razões pelas quais gosto do rádio é a ausência de imagens, diz Nicolas Philibert na entrevista à publicação francesa Telerama em meados de abril deste ano, quando do lançamento do documentário La Maison de la radio (traduzido aqui como A estação de rádio). Ao longo de seis meses, o diretor observou e filmou estúdios e corredores, programas de entrevista e de entretenimento, jam sessions e reuniões de pauta da France Inter, uma das maiores estações de rádio pública da França. Descobrir aquilo que escapa ao olhar, os mistérios e os corredores de uma forma de mídia cuja matéria final, o som, permanece invisível, completa ele na mesma entrevista.

Não é a primeira vez que Nicolas Philibert se aproxima de pessoas e mundos a partir do som, e da maneira como ele ocupa espaços e produz experiências. Se em Le Pays de Sourds (1999) o diretor ilumina a transformação do som em sinais ao acompanhar um grupo de homens e mulheres surdos, em La Moindre de choses (1996), é a fala em suas diversas apresentações (música, texto, discurso) que transforma a experiência solitária dos loucos de um asilo em ato de partilha com o mundo exterior. Todavia, desta vez o resultado é bem menos empolgante, e de certa forma, bastante superficial.

Os seis meses de observação e registro são organizados em uma narrativa que simula “um dia de visita” à rádio, um passeio pelos estúdios que permite vislumbrar a eclética programação feita de informação e entretenimento. Philibert, cujo documentário de observação toma de empréstimo estratégias e escolhas típicas do cinema direto americano (cujo maior expoente contemporâneo talvez seja o diretor Frederick Wiseman), realiza um filme de planos médios e [muitos] closes, concentrado nas falas dos diversos personagens que desfilam pela tela (entre anônimos e estrelas, como o sociólogo francês Edgar Morin e o escritor italiano Umberto Eco), na maneira como elas são cuidadosamente enunciadas e colocadas em cena. Ainda que a montagem busque um equilíbrio entre as diferentes atrações da programação, o resultado é repetitivo e, as vezes, monótono. As melhores cenas acontecem no final do filme, durante a programação noturna, com a divertida participação dos ouvintes ao telefone e uma interessante programação experimental. Um filme bem menos emocionante e imersivo que os anteriores, mas, ainda assim, parte da obra de um diretor que merece todo nosso respeito.

-------------------------



AMAZÔNIA


por Luiz Fernando Gallego

Exibido na sessão de encerramento do Festival de Veneza deste ano e escolhido para abrir o Festival do Rio 2013, AMAZÔNIA, dirigido pelo francês Thierry Ragobert é coprodução franco-brasileira: filmado na floresta, tem como personagem-guia um pequeno macaco-prego que sobrevive ao acidente de avião em que estava sendo transportado. A partir daí o espectador tem acesso a bonitas imagens em 3-D, enfocando principalmente a rica e variada fauna: de onça pintada a botos cor-de-rosa, de lagartos a gaviões, de tamanduás a tatus, de cobras coloridas a pequenos insetos (estes grupos surgem bem ampliados na tela grande, podendo desagradar fóbicos) e, principalmente, macacos.

Exceto para estrangeiros e/ou apaixonados pelo “exótico” de nossas matas tropicais, o resultado final deixa a sensação de que um making of seria mais interessante do que o filme em si - bonito, mas lembrando insistentemente documentários em estilo National Geographic (só que sem narrador) – ou mais ainda, antigos filmes Disney com animaizinhos na natureza da série “Adventureland”, exibidos no programa de TV dos anos 1950/60 “Disneylandia”, alguns até mesmo lançados em nossas salas de cinema.

Para quem curtir o macacquinho fofo e as bonitas imagens pode ser um programa atraente, especialmente para se ficar perguntando como foi que conseguiram “desempenhos” tão bons dos animais.

------------------------

NOSSA QUERIDA FREDA - A SECRETÁRIA DOS BEATLES

por Luiz Fernando Gallego


Para quem não sabe quem é a NOSSA QUERIDA FREDA a quem se refere o título deste documentário, um subtítulo foi acrescentado e esclarece: ela foi, durante 11 anos, A SECRETÁRIA DOS BEATLES (Good Ol’ Freda). Em tempos de culto exponencial às celebridades, mesmo quem não é e nem nunca foi exatamente famoso pode ter seus 15 minutos célebres por conviver (ou ter convivido) com gente famosa. A razão pela qual Freda Kelly mereceu ser tema de um filme é sua proximidade com o quarteto musical mais famoso do século XX. Fã desde o Cavern Club de Liverpool, a jovem de 17 anos foi escolhida por Brian Epstein como secretária, papel que ela cumpriu com absoluta fidelidade durante todo o tempo de existência do grupo. É essa mesma fidelidade que torna o filme tão interessante (mesmo para os que não são fãs empolgados dos Beatles) quanto carente de grandes revelações, íntimas ou musicais. Tendo se comprometido com segredos pessoais dos Beatles ela era mais leal a eles do que a uma amiga que esteve saindo com Lennon quando ninguém sabia que ele era casado; Freda sabia, mas não contou à amiga.

Simpática e sorridente, a senhora que Freda é hoje em dia pode cativar o espectador na primeira meia hora do filme e que poderia ser um excelente programa de TV de 60 minutos, mas sem tanto material assim para o filme de 86 minutos que Ryan White dirigiu satisfatoriamente, mas sem maiores voos. O filme anterior de White tem como título original “Pelada”, referindo-se ao modo mais informal de jogar futebol.

------------------

SONAR

por Luiz Fernando Gallego

SONAR (título original: Echolot), o filme alemão dirigido pelo grego Athanasios Karanikolas, retoma a situação de tantos outros em que um grupo de pessoas estão reunidas por algum motivo mais ou menos dramático; no caso, a morte de um amigo comum cujo suicídio permanece um enigma para os sobreviventes. Mas não pensem que desta vez haja alguma proximidade com filmes americanos ou ingleses que tiveram semelhante ponto de partida (como O Reencontro, de 1983): aqui, não há praticamente dramaturgia alguma, tudo se resume a falas mais ou menos soltas, geralmente em close, entremeadas de ações descosturadas como dançar, transar, beber e fazer comentários igualmente dispersos.

Os reduzidos 77 minutos de duração pesam como se se tratasse de um filme muito mais longo. A explicação para o suicídio do amigo morto nos parece fácil: ele preferiu se matar a ter que participar desse filme tão pretensioso quanto frustrado.

-------------------------

BASTARDOS

por Luiz Fernando Gallego


BASTARDOS (título original Les Salauds) confirma o domínio das imagens por parte da diretora Claire Denis: ela faz o que quer e sabe fazer bem feito. Quando quer. Pois parece querer, a todo instante, desestabilizar a compreensão do público através de elipses que nem sempre são esclarecidas, de cenas muito escuras em que mal se distingue quem está lá nem o que está acontecendo, assim como de inserções acronológicas nas quais não se consegue captar o que seria “flashback”, “flash-forward” ou imaginação de um ou outro personagem.

É assim que o que poderia ser uma experiência mais acessível no terreno de uma abordagem contemporânea do gênero noir se perde em afetações de estilo (?) da cineasta. Pior ainda é o desfecho (não será informado aqui) do enredo, que parece pretender crer “escandaloso” ou “pour épater” em um suposto “grand finale”. Um desperdício da boa fotografia (quando não se quer tão escura) e dos atores esforçados em dar vida à trama (Vincent Lindon e Chiara Mastroianni) ao lado de um envelhecido e menos expressivo Michel Subor e de uma mal aproveitada Lola Créton.

----------------------

O ATO DE MATAR

por Carlos Alberto Mattos

Documentário recordista de repercussão da temporada internacional, produzido por Werner Herzog e Errol Morris, O Ato de Matar (The Act of Killing) pinta um dos quadros mais pavorosos da história da crueldade humana. Não só pelo seu tema – o massacre de mais de 1 milhão de suspeitos de comunismo entre 1964 e 1965 na Indonésia -, mas principalmente pela frieza, cinismo e impunidade com que os carrascos relatam e encenam seus feitos perante a câmera de Joshua Oppenheimer. O ex-gangster Anwar Congo e o paramilitar Herman Koto concordaram em liderar uma equipe de filmagem-dentro-do-filme para fazer uma produção trash reconstituindo as torturas e assassinatos que cometeram.

Esse procedimento, ao mesmo tempo que permite a exibição de detalhes dos estrangulamentos com arame, decapitações e outras façanhas, envolve tudo num clima “inocente” de cinema barato e sublinha o caráter subhumano dos personagens. Daí nasce uma ambiguidade, na qual os personagens reais se confundem com atores e o sadismo chega à tela como algo

quase inacreditável. O cinema americano tem participação importante como fornecedor de mitologias e modelos de ação para Anwar Congo. Ele mesmo era dono de uma sala de exibição, e o interesse dos comunistas em restringir a entrada de filmes americanos no país foi um dos fatores que alimentaram sua sanha assassina.

O que mais espanta é que até hoje aqueles homens sejam cultuados como heróis, contem impunemente seus crimes em programas de TV, pratiquem extorsões abertamente e contem com o apoio explícito de ministros de estado. A Indonésia segue sendo um país submerso no horror. O filme de fato impressiona, mas poderia ser menos repetitivo e, em vez de 160 minutos, ter uns 40 a menos.

--------------------------

UM TIME SHOW DE BOLA

por Carlos Alberto Mattos 

Que os argentinos façam o mais massivo filme latino-americano passado no âmbito do futebol, idealizem uma equipe imbatível e ainda construam na ficção “o maior estádio do mundo” é coisa demais para o torcedor brasileiro aguentar. Mas quem fizer ouvidos moucos a essas provocações não vai deixar de curtir Um Time Show de Bola. O mais caro blockbuster do cinema hermano aspira a um lugar entre os grandes da animação contemporânea. A história assemelhada à de Toy Story e o nível de ponta da animação 3D praticamente equiparam Metegol ao melhor da produção americana.

A intenção de criar personagens universalmente carismáticos com traços fortes do jeito argentino de ser é uma ousadia afinal bem realizada. As citações de clássicos do cinema ajudam a criar um repertório familiar a todos, haja vista que o filme se destina a um público de todas as idades, embora talvez mais especialmente masculino. Juan José Campanella abusa um pouco do seu típico pensamento desejoso, fazendo o impossível acontecer na história por força das virtudes pessoais e da consciência humanista em relação ao progresso e à megalomania. É impossível não ver o vilão superjogador como uma crítica à mania de grandeza argentina.

A direção é excessiva também na invenção de truques visuais e narrativos, que acabam cansando um pouco. Mas a fluidez dos movimentos, a fantástica expressividade dos olhos e lábios dos personagens, a direção de arte impecável e o uso funcional do 3D sustentam um interesse permanente. O fato de os jogadores de totó terem a mesma cara, diferenciados apenas pelo cabelo e o comportamento, é mais um desafio vencido galhardamente.

www.avtokum.com/
www.zubochist.com.ua
date russian women

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário



Outros comentários
    643
  • Lobo Mauro
    27.09.2013 às 19:32

    Preciosas informações. Valeu!