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CHOQUE DE REALIDADE

11.10.2013
Por Ricardo Largman
Um olhar panorâmico sobre a temática que uniu os filmes de ficção em competição no Festival do Rio

Num momento em que Hollywood dirige seu foco para filmes sobre a influência das novas tecnologias e das redes sociais no mundo globalizado do século 21, o cinema latino-americano volta-se para temas mais prosaicos em que a aspereza cenográfica confunde-se com o recorrente infortúnio de seus personagens. É o que revela – como uma espécie de tendência natural e visceral – grande parte das obras selecionadas para a Mostra Competitiva do Festival do Rio 2013.

Em comum, uma quase obsessão em retratar a miséria humana espalhada e espelhada nos mais distintos microuniversos do continente. Num vilarejo remoto do México, numa metrópole brasileira, no passado e no presente, dor e solidão são personagens indefectíveis. Por vezes, as vicissitudes explodem na tela de forma escatológica; noutras, despropositada, pela pura e simples intenção de chocar o espectador. A letargia patológica do protagonista de Halley, do estreante mexicano Sebastián Hofmann, fica no meio deste caminho ao recriar, misturando Kafka e Cronemberg, a história de um homem comum que se transforma brutal e fisicamente – desta vez, num zumbi.

Mais experiente e também representante do México, Amat Escalante retrata com Heli, um dos destaques do festival, a violenta e crudelíssima realidade imposta pela guerra do tráfico à periferia de seu país. Como seus personagens, Escalante não admite concessões. Ora um corpo ensanguentado é atirado do alto de uma passarela, ora o espectador depara-se com cenas de suplício e humilhação atrozes. Por mais absurdas que sejam, não se comparam à imagem de frieza e indiferença com que os narcoalgozes promovem a barbárie. A vida alheia, pela ótica do cineasta, vale tanto quanto uma garrafa de cerveja vazia.

Opressão – nesses casos – psicológica dá a tônica de Carne de Perro, do chileno Fernando Guzzoni, O Homem das Multidões, dos brasileiros Marcelo Gomes e Cao Guimarães, e La Paz, do argentino Santiago Loza. Três filmes completamente diversos: o primeiro pode ser resumido como a “crise existencial” de um ex-torturador no limiar de seu descontrole emocional; o segundo, com uma narrativa pontuada por planos longos, lentos e fechados, mostra a vida árida e tediosa de dois funcionários, um homem e uma mulher, do metrô de Belo Horizonte; e o último, que acompanha a difícil saída de um jovem suicida de um hospital psiquiátrico e a busca por um novo norte – geográfico, que seja – para dar rumo à sua vida. Três filmes completamente semelhantes, contudo: a solidão parece que entorpece seus protagonistas. Dilacera-os, literalmente. Eis um reflexo sem distorções do mal que, silencioso, e indistintamente, devasta a sociedade moderna da América Latina, reduzindo de forma dramática a resiliência do indivíduo e das famílias.

Um sopro de otimismo vem do sensível La Vida Después, do mexicano David Pablos, envolvendo uma mãe com problemas mentais e seus dois filhos adolescentes. O diretor-roteirista adota aqui uma linha fílmica bastante convencional, mas sob todos os pontos de vista correta e qualitativa. Um drama pungente e delicado cujo mérito maior seja, talvez, o de não ousar.

Ousadia, por outro lado, é o que não falta ao brasileiro Tatuagem, de Hilton Lacerda. Com um desempenho memorável, o ator Irandhir Santos conduz uma trupe teatral que, no final dos anos 1970, ainda sob o controle do regime militar e da censura à arte, desafia o poder e as convenções sociais da época com uma profusão de críticas – entre o humor e o sarcasmo – à religião, à família e às tradições, além, é claro, de oferecer ao espectador doses generosas de nudez e de inspirada musicalidade.

Numa mostra com tantas semelhanças e ao mesmo tempo tão plural, há espaço ainda para veteranos como o brasileiro Sérgio Bianchi. O autor de Cronicamente Inviável traz à tona, 40 anos depois, as angústias da esquerda que sobreviveu à ditadura militar no Brasil em Jogo das Decapitações. É mais do que explícita a conexão com as recentes manifestações que têm ocupado as ruas de todo o país: no dia da exibição oficial do filme, numa sala de cinema a poucos metros da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, o público podia ouvir o ruidoso embate entre a população e as forças policiais. Se, de fato, o cinema latino-americano mantém-se hoje deslocado da temática hollywoodiana, ele nunca esteve tão próximo de sua própria realidade.

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