DVD/Blu-ray


A ARTE DE SAMUEL FULLER

09.06.2016
Por Hamilton Rosa Jr.
Documentário nos extras quase ofusca o ótimo estojo de filmes

Não ocorre sempre, mas em alguns casos, o material extra do DVD são tão estimulantes, que deviam ser vistos antes do filme. Um exemplo bem ilustrativo disso pode ser visto no pack "A Arte de Samuel Fuller", lançado pela Versátil. Na seção de extras há um documentário “A Máquina, o Rifle, a Câmera”, que oferece uma visão bem rica e abrangente do mestre do filme "B" norte-americano. O extra de 55 minutos só não ofusca o estojo, porque o conjunto brilha como uma constelação. Reúne a obra-prima de Fuller, "Paixões que Alucinam", mais três ótimos filmes: "O Beijo Amargo" (meu preferido) , "O Quimono Escarlate" e "A Casa de Bambu".

Claro que não podemos deixar de abordar essas pérolas, mas por que não inverter um pouco o jogo, propondo o documentário como introdução antes dos filmes?

O começo de “A Máquina, o Rifle, a Câmera" é um sonho pra qualquer cinéfilo: Fuller em pessoa abre a garagem de sua casa em Los Angeles para Quentin Tarantino e Tim Robbins “brincarem” no seu museu particular. Estão lá no meio da poeira, o velho capacete amassado tal o qual vemos em “Capacete de Aço” (The Stel Helmet, 1952) a máquina de escrever que Fuller usava para escrever seus roteiros, fotos de bastidores nunca vistas, cartazes. E as tralhas de repente se transfiguram como memórias do veterano. Memórias que progridem tridimensionalmente, desenvolvidas sobre a experiência de jornalista de Fuller (A Máquina), como correspondente de guerra (o Rifle) e como cineasta de Hollywood (a Câmera).

No discorrer, ambição e ironia caminham juntas. Ao mesmo tempo que há toda uma preocupação em organizar o filme com rigor científico e é um prazer ver Fuller falastrão e mordaz interrompendo a entrevista com seus apostos saborosos. Quando Robbins explica o conceito do título, Fuller responde: "gostei, mas será que o perfil de uma pessoa pode ser considerado apenas por esses três temas que você vê? Existe aquilo sobre mim que você não vê. Como você resolve essa questão?"

E então o cineasta solta uma gargalhada, como que atestando os limites do que um documentarista pode encontrar como verdade do sujeito documentado.

O primeiro segmento, “A Máquina" leva o espectador a época de formação de Fuller, que saiu das ruas, onde era entregador de jornais para a redação. Bem humorado, o veterano conta a primeira crônica policial que escreveu. Título: Quem matou o papai Noel? Espirituoso, Fuller faz um silêncio para aumentar a expectativa. Depois explica: a crônica narrava em tom desencantado, a ferocidade e o horror absoluto do sujeito desempregado que em plena noite de natal se matou.

A peculiaridade do caso ilustra bem o modus operandi do cineasta, o sujeito sempre em busca da abordagem diferenciada em cada um dos 22 filmes que dirigiu. Seja em faroestes, policiais, filmes de guerra, os cinéfilos sabem que em Fuller, o "como" sempre foi mais importante que o "o que". Fuller foi o artista inconformado contra os raciocínios viciantes. Ele burlava a intriga mecanizada. Se foi sempre um cineasta "B" nos Estúdios de Hollywood, foi porque nunca aceitou uma visão condicionada.

Além de Tarantino e Robbins comparecem com declarações Martin Scorsese e Jim Jarmusch. Scorsese não diz grande coisa, mas a observação de Jarmusch, no segmento, "O Rifle", é bem analítica e interessante. Na visão dele, os filmes do veterano sempre trataram dos EUA, como se fosse uma mentira. Fuller lutou na guerra por três anos e viu a morte de perto. Assim desde cedo aprendeu a ver o mundo como algo brutal e cruel. Não tinha ilusões. O american way of life que Hollywood insistia em propagar, para ele era bobagem.

A primeira câmera que ganhou, Fuller usou para filmar a libertação dos judeus num campo de concentração. A partir dali, não havia mais com o que se iludir, percebeu que o sentimento do surreal e do excêntrico eram tão naturais como respirar. Quando chegou a Hollywood, os produtores não gostaram dele. Só deram um desconto porque descobriram que ele escrevia rápido, muito bem e de forma original. Levava de quatro a cinco dias para por o ponto final num roteiro de 100 páginas. Depois, quando mostrou que era capaz de escrever e dirigir um filme em menos de duas semanas, conseguiu a cadeira. “Matei Jesse James” (1949), sua primeira direção, foi rodado em 10 dias. No set, filmava com a dinâmica de um jornalista se colocando ao lado da ação, e finalizando antes do calor da cena se dissipar.

Fuller explica, durante a entrevista, que isso produzia sensação em torno de seu nome. Ainda que não gostasse, era bom para os negócios. O homem que emerge do documentário não se leva nunca a sério e gosta de brincar com as palavras. Sensação para ele é uma palavra feia, mas deriva para outra palavra que ele gosta: sensacionalista. Prefere se ver como um sensacionalista. De certo, porque sempre gostou de explorar as emoções baratas - medo, excitação, repulsa. Talvez esteja aí um dos motivos por que sua arte nunca foi estéril.. À partir disso, podemos cogitar porque "emoções baratas" e "arte" não costumam ser associadas por outros diretores. Porque é preciso entender e ter a intimidade para usá-las.

Saindo do documentário e indo para os filmes do boxe, podemos ver quatro formas de como criar um grande filme combinando as emoções baratas.



Os filmes do pack



Paixões Que Alucinam (Shock Corridor, 1963) - Jornalista ambicioso (Peter Breck) simula a loucura para se internar em hospital psiquiátrico, a fim de fazer uma reportagem de um crime não elucidado. Há de tudo entre os internos, do soldado que sofreu lavagem cerebral na Coréia, ao cientista que afirma ter feitos pesquisas sobre fissão nuclear que o fizeram regredir à infância. O infiltrado acredita estar chegando perto, mas prolonga tanto sua estadia no hospício, que começa a perder a noção da normalidade. O filme é sarcástico até o delírio. Fuller descontrói o herói idealista típico do cinema norte-americano, a começar pelo seu caráter (o idealismo do jornalista é usado como desculpa para uma razão maior, a autopromoção, a ambição do sujeito tem mais a ver com vaidade, ganhar o prêmio Pulitzer). Depois Fuller nos induz a acreditar que está fazendo uma denúncia aos maus tratos nos reformatório, quando na verdade a questão é bem mais ampla: os internos do hospício são quase todos arquétipos sociais da América dos anos 60. Há o negro vítima de racismo, o soldado alquebrado, o cientista obcecado, todos chagas de questões que as instituições não sabiam como lidar.

E Fuller não recua diante de nenhum excesso, não se preocupa com nenhuma verossimilhança (as terapias médicas praticadas no filme são mais que fantasiosas) para embasar sua demonstração. Em suma, um filme para ver e rever.

O Beijo Amargo (Naked Kiss, 1964) - Um flerte de Fuller com o melodrama, mas naquele estilo seu: cruel, cínico, sem compaixão. Vemos uma prostituta (Constance Towers) que, decidida a se “regenerar”, vai trabalhar com crianças deficientes (físicas), mas, depois de ser atazanada por um policial e envolver-se com um milionário estranhíssimo em uma cidadezinha tranqüila, atola na lama. Em vez de limpar o estigma de mulher da vida, acaba agravando-o. Fuller trata a personagem como uma fera machucada, aparentemente escolhida para penar no mundo. Se quando filma sua chegada à cidadezinha, enquadra pés e pernas dela como se enquadra uma pouco confiável femme fatale do cinema noir, depois a absolve mostrando a fortaleza de seu caráter. Apanha, apanha, mas resiste. Vê-se aqui o desenvolvimento da semente inconformista plantada desde "Matei Jesse James", tanto na insistência no protagonista condenado a purificar-se na dor (antecipando, outro cineastas das feridas, Martin Scorsese) como na recorrência de planos em expressões faciais (olhares principalmente), super elaborados.

Casa de Bambu (House of Bambu, 1955) – Policial pitoresco de Fuller filmado no Japão. A abertura é de uma beleza de tirar o fôlego: um assalto a trem acontecendo em frente ao monte Fuji. A quadrilha usa máscaras japonesas e rouba armamentos do exército norte-americano. Em clima de mal estar pós-guerra, as autoridades americanas investigam os implicados achando que a bagunça é promovida pela máfia japonesa. Mas cai a máscara, e descobre-se que se tratam de ex-soldados americanos. Um ex-oficial (Robert Ryan) montou uma quadrilha, só de acolher os heróis de guerra que o exército desprezou. Trata-se, portanto, de um problema política que precisa ser resolvido, mascomo chegar ao homem?

Robert Stack é o inflitrado cuidadosamente colocado dentro da célula do crime.

“Casa de Bambu” é um dos filmes mais influentes da década de 50. Scorsese conta que foi a grande inspiração quando rodou "Os Infiltrados". De fato, a forma com a ação se constrói, as soluções visuais, e o jeito como o chefão testa a fidelidade do novo integrante, se equiparam nos dois filmes. A parte as semelhanças, surge uma estranha estima entre o chefão e o pupilo, quase um carinho, evocando uma inclinação homossexual de Robert Ryan. É velado, mas está lá.

O Quimono Escarlate (The Crimson Kimono, 1959) – Magnífico policial onde pintores e a pintura desempenham um papel inusitado e intrigante. Uma stripper é baleada nas ruas de Los Angeles e a única pista é um quadro que o assassino tentou destruir depois do crime. Dois investigadores, um americano (Glenn Corbett) e um japonês (James Shigeta) localizam a autora da pintura (Victoria Shaw) e de repente a investigação fica em segundo plano. Os dois detetives se apaixonam pela artista e toda uma discussão sobre a natureza da sensibilidade ocidental e oriental ganha a cena. Quando a pintora revela a preferência pelo japonês Shigeta, o racismo entre os dois parceiros aflora e ameaça por a lealdade entre eles a perder.

A direção de Fuller aqui é elaborada. Trabalha em torno de três pontos de vistas que se entrelaçam, o do detetive japonês, do americano, e da pintora, e do modo como cada olhar apresenta uma combinação de filtros diferentes. Sob essa condição, o que um julga enxergar pode ser muito diferente do que o outro enxerga. E neste quesito, sentimentos como ciúmes, racismo e outros preconceitos se esvaziam. Poucas vezes, Fuller foi tão conceitual na abordagem da natureza do olhar como ocorre neste “O Quimono Escarlate”. É mais uma admirável lição de cinema do mestre.

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