Críticas


MADAME SATÃ

De: KARIM AÏNOUZ
Com: LÁZARO RAMOS, MARCÉLIA CARTAXO, FLÁVIO BAURAQUI, EMILIANO QUEIROZ
12.11.2002
Por Carlos Alberto Mattos
FALTOU PÊNIS

Existe um grande vazio no coração de Madame Satã. Um vazio que pode ser visto como coisa positiva, se forçarmos uma interpretação nesse sentido. Karim Aïnouz não perde uma oportunidade de reafirmar que não quis fazer uma biografia do famoso malandro e traficante homossexual da Lapa dos anos 30. Não quis repisar clichês do folclore boêmio nem sair-se com um filme policial de eficiência sub-hollywoodiana. Concentrou-se nos anos de formação do personagem, quando ele apenas despontava para a fama e para um quilométrico currículo marginal.



Não é difícil comprovar essa opção um tanto impressionista. Em grande parte das cenas, a narrativa se organiza através de fragmentos, que a câmera de Walter Carvalho recolhe com habilidade nos corpos, tecidos, cortinas, adereços etc. As constantes entradas e saídas de foco ajudam a compor um retrato deslizante, que não se quer completo nem definitivo. Em lugar da ação, que caracterizaria o aspecto criminal, o filme privilegia a performance, que sublinha um sonho de artista e mitômano. Mais que a fúria, procura-se captar a elegância de João Francisco dos Santos.



Karim Aïnouz tenta preencher com a estética o muito que lhe falta em matéria de roteiro, produção e encenação. Quando João demonstra seus dotes de capoeirista, por exemplo, é a montagem que tenta, precariamente, dar conta do recado. A reconstituição de época, apenas indicativa, é suprida por uma fotografia espertamente escurecida (Walter Carvalho usou artifícios de revelação para obter aquela textura noir) e uma edição sonora “cenográfica”, que povoa o espaço off com ecos de um mundo negro que nunca aparece na tela. A caracterização dos ambientes depende, portanto, mais do poder de sugestão que da reunião efetiva de elementos “convincentes”.



Narrar as origens de um mito de maneira tão indireta não deixa de ser uma atitude corajosa. Mas o atrevimento estético de Madame Satã não esconde uma certa frieza no confronto com os fatos. Apesar de suas cenas de sexo falsamente ousadas (dá o que pensar a ausência da imagem do pênis em obra tão falocêntrica), o filme não chega a aquecer a temperatura da sala de exibição. O roteiro é um tanto desarticulado e esvazia a personagem, sem nunca apontar, ainda que premonitoriamente, o coquetel de transgressões que comporia a mitologia de Madame Satã. Afinal, ele não foi apenas uma bicha que queria virar estrela. A direção perde o tempo interno de várias cenas e falha na criação de uma pretensa atmosfera simultaneamente suja e brilhante.



A atuação de Lázaro de Souza é digna de todos os elogios que vem recebendo. Marcélia Cartaxo também valoriza suas aparições com doses certas de escracho e ternura. Em compensação, os excessos de Flavio Bauraqui, embora em si competentes, reeditam um tipo de “bicha louca” que o cinema brasileiro já havia deixado para trás, na poeira dos anos 1970. Pior que isso é o sotaque Ipanema-2001 de Fellipe Marques, deslocado no papel do crucial Renatinho.



O prestígio nacional e internacional de Madame Satã é um dado a festejar no bom momento que vive o cinema brasileiro. Mas, certamente, está acima do que justificam suas qualidades.





# MADAME SATÃ

Brasil, 2002

Direção e Roteiro: KARIM AÏNOUZ

Produção: ISABEL DIEGUES, MAURÍCIO ANDRADE RAMOS, WALTER SALLES

Fotografia: WALTER CARVALHO

Direção de Arte: MARCOS PEDROSO

Montagem: ISABELA MONTEIRO DE CASTRO

Direção Musical: SACHA AMBACK, MARCOS SUZANO

Elenco: LÁZARO RAMOS, MARCÉLIA CARTAXO, FLÁVIO BAURAQUI, EMILIANO QUEIROZ, RENATA SORRAH

Duração: 105 min.

site: www.madame.com.br



Leia a crítica de Marcelo Janot

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