Imagine um ex-astro do rock de visual gótico como o de Robert Smith, do The Cure, saindo de seu refúgio irlandês e pegando a estrada nos EUA para caçar um criminoso de guerra nazista. Por mais improvável e estranho que isso soe, há uma coerência na trama de “Aqui é o meu lugar”. O diretor italiano Paolo Sorrrentino (do ótimo “Il Divo”) parece consciente do risco que correu ao inserir um tema sério como o Holocausto em uma atmosfera recheada de humor e melancolia.
A ferida nazista é o elemento externo que permitirá ao espectador penetrar na mente enigmática do personagem. O que pensa Cheyenne, um roqueiro aposentado que vive com a mulher numa mansão em Dublin, intercalando partidas de pelota basca numa piscina vazia e passeios diários no shopping, para onde vai quase se arrastando? E que, apesar do jeito meio sequelado de se expressar (que lembra Ozzy Osbourne), tem como um de seus passatempos investir no mercado de ações?
Somente após receber a notícia de que o pai, que não via há décadas, está morrendo, ele resolve regressar aos EUA. Lá, descobre que o nazista que humilhou seu antepassado, sobrevivente de um campo de concentração, vive escondido em algum recanto americano. E vai atrás dele como uma forma de encontrar dentro de si, ao mesmo tempo, o pai e o filho que nunca foi. É quando passamos a enxergar o ser humano que se esconde na fantasia de ex-roqueiro melancólico que escolheu para si mesmo.
Sorrentino também faz da viagem de Cheyenne um retrato da América, com seus elementos arquetípicos como o cinema tantas vezes nos mostrou, seja pelo olhar estrangeiro de Wim Wenders ou pelo americano dos irmãos Coen. Não deve ser coincidência o fato de que Harry Dean Stanton, de “Paris, Texas”, faça uma pequena participação como o inventor da mala de rodinhas. E que a mulher de Cheyenne seja vivida pela musa dos Coen, Frances McDormand. A presença de ambos parece mais justificada pelo simbolismo que os atores carregam do que pela pouca função de seus personagens na trama.
O título original, “This must be the place”, é o mesmo de uma bela canção dos Talking Heads, executada o tempo inteiro, em várias versões, inclusive ao vivo por David Byrne, numa das cenas de show mais bem filmadas de todos os tempos. Cheyenne encontra nos bastidores o velho amigo Byrne, o artista que se reinventou, e desabafa, dando sinais de que pode se libertar de sua couraça.
Essa transformação sutil é uma das inúmeras qualidades da atuação magistral de Sean Penn, que compreende o personagem por detrás do personagem e consegue transitar com perfeição entre o realismo e a caricatura. Num registro introspectivo incomum numa carreira de interpretações explosivas, Penn leva o filme nas costas, disfarçando até algumas pequenas imperfeições de roteiro.
(publicado originalmente em O Globo de 27.7.12)