Convidados


ANTONIO MONIZ VIANNA

04.06.2013
Por Evaldo Mocarzel
Lendário crítico brasileiro abriu o jogo sobre sua visão do cinema em conversa franca com o jornalista e cineasta Evaldo Mocarzel, feita para o Críticos.com.br, três anos antes de sua morte, em 2009.

Publicado originalmente em 26.10.2006



O veterano crítico de cinema Antonio Moniz Vianna, 81 anos, que influenciou várias gerações desde o tempo em que atuou no Correio da Manhã, não gosta de dar entrevistas, principalmente se forem gravadas. Sua primeira crítica foi publicada em 9 de março de 1946, quando ele tinha 21 anos. Embora possua um celular, Moniz Vianna não vê a tecnologia com bons olhos e reclama da desumanidade que vem tomando conta da vida das pessoas nas grandes cidades. No mundo do cinema, ele lamenta que os antigos palácios que eram as salas de exibição tenham se transformado em “lojas” para vender pipoca.



Nessa rara entrevista que concedeu ao Criticos.com.br, graças à interferência da filha Isadora e do neto Eduardo (que também já vem se aventurando no ofício de escrever críticas de cinema), Moniz Vianna passa em revista a trajetória de 110 anos da chamada sétima arte. Fala dos principais movimentos que marcaram a História do Cinema, destaca os filmes que mais o emocionaram e, sempre polêmico, analisa a produção nacional que, para ele, nunca produziu uma autêntica obra-prima.



Tímido, Moniz Vianna fez uma única aparição no cinema como figurante “mudo” em O Quarto, de Rubem Biáfora. Ainda se recuperando de uma pneumonia, o célebre crítico deu entrevista em seu apartamento em Copacabana, no Rio, e depois reviu fotos de décadas passadas em que viajava para a Europa e para os Estados Unidos para se encontrar com nomes como Gary Cooper, Glenn Ford e Tony Curtis, entre muitos outros. Moniz Vianna tem especial apreço pelo cinema americano, principalmente por alguns títulos de John Ford, entre eles, O Delator, sempre presente nas listas que fez sobre os melhores filmes de todos os tempos. Por outro lado, detesta o chamado “cinema de autor”, especialmente Jean-Luc Godard.



O senhor foi um crítico que sempre apreciou muito o cinema americano. Também gosta de filmes europeus?



Antonio Moniz Vianna: Eu também gosto de alguns autores europeus.



Quais autores? Gosta, por exemplo, dos diretores do neo-realismo italiano?



AMV: Depende dos filmes. Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica, por exemplo, é um grande filme. Agora, Roma, Cidade Aberta, do Roberto Rossellini, eu não acho o grande filme que acham. É muito malfeito. Acho também mal interpretado, com exceção logicamente da Ana Magnani e do Aldo Fabrizzi. Mas o filme é mal interpretado pelos outros atores amadores. Eu acho Rosselini um diretor chato. Sem nenhum encanto para mim. De Sica, não. De Sica para mim é um grande diretor.



Como se deve formar pessoas para começar a escrever sobre cinema?



AMV: Acho que é preciso fazer faculdade de Medicina, Direito e Engenharia, por exemplo. Mas não vejo necessidade em se fazer faculdade de Jornalismo e Cinema.



Mas se não se deve formar pessoas para escrever sobre cinema, como é que as pessoas começam a fazer crítica sobre os filmes?



AMV: Vendo filmes. E lendo. Não precisa ir para uma faculdade. Eu acho que não precisa. No entanto, quem quer se dedicar à parte técnica do cinema, fotografia e montagem, por exemplo, aí eu acho que precisa. Se uma faculdade ensina, aí sim é necessário! Ninguém aprende isso sozinho. Mas, para aprender a narrativa de um filme, a gente aprende lendo. Aliás, os grandes diretores diziam isso. E eles começaram assim. Não se forma um romancista, assim como não se forma um cineasta.



O senhor já disse que a nouvelle vague nunca produziu um grande filme.



AMV: Nunca fez.



Nem “Os Incompreendidos”, do François Truffaut?



AMV: Os Incompreendidos é um filme plano, sem nada. Foi uma época em que as pessoas se deixavam marcar demais por aqueles filmes. Mas eu, não. Não gosto da nouvelle vague, não.



E de um cineasta mais clássico como Louis Malle, autor de um filme belíssimo como “Os Amantes”?



AMV: Não. Malle, inclusive, nem era bem nouvelle vague. Foi um cineasta contemporâneo do movimento e vivia naquele meio. Malle é até mesmo um pouco anterior aos cineastas da nouvelle vague. Mas o grande cinema francês é outro e existiu na segunda metade da década de 30.



Jean Renoir?



AMV: Jean Renoir não é o cineasta francês de que gosto mais. O meu favorito é o Marcel Carné em filmes como Les Visiteurs du Soir (Os Visitantes da Noite). Outro magnífico filme dele é Le Jour se Lève (Trágico Amanhecer). Também gosto muito de Quai des Brumes (Cais das Sombras). Marcel Carné fez Les Visiteurs du Soir durante a ocupação e é um grande filme. E Les Enfants du Paradis (O Boulevard do Crime) é o maior filme francês de todos os tempos, ao lado de Napoléon, de Abel Gance. Para mim são os maiores filmes franceses de todos os tempos.



Como nasceu a sua paixão pelo cinema?



AMV: A gente não sabe. Eu sempre li muito. Desde muito cedo. E comecei a gostar de cinema com mais ou menos... Eu tenho uma coleção de filmes daquela época, dos anos 30. Eu acho a década de 30 fundamental para o cinema, pois foi quando foram fundados todos os gêneros. Eu adoro cinema mudo. O que eu lia com 10, 11 anos? Eu lia o suplemento juvenil que havia naquela época e a (revista) Scena Muda. Eu fazia coleção de Scena Muda. Saíam de cinco a seis filmes em cada uma, com fotos e sinopses. Muitos filmes eu não podia ver, porque eram impróprios para a minha idade. E na época a gente não entrava mesmo no cinema. Hoje, mesmo sendo um filme impróprio, um menino entra. Mas, na época em que eu era menino, não entrava, não. Eu também lia muito romance. Eu acho que o que me levou ao cinema foi esse misto de literatura e cinema, tudo misturado na minha cabeça. Tanto que, mais ou menos com 15, 16 anos, meu interesse por cinema ficou muito mais forte. E eu comecei a fazer até ficha de filme. Só havia duas revistas de cinema acessíveis no Brasil: Scena Muda, que era para fãs, e Cinearte. No resto do mundo também eram muito poucas.



Que filme marcou muito o senhor nessa época?



AMV: Um filme que me marcou muito foi O Delator, de John Ford. Mas acho que, nessa época, eu tinha uns 12 anos.



Por que ”O Delator” marcou tanto o senhor?



AMV: Como é que eu vou saber?! Não sei... Me marcou... Na adolescência, também me marcou muito Vinhas da Ira, também de John Ford. Outro de John Ford: Longa Viagem de Volta. É um filme que quase ninguém conhece e pouca gente gosta. São muitos os filmes que me marcaram. Eu vi Cidadão Kane na estréia, em 1942, com menos de 20 anos.



Como foi o impacto de ver “Cidadão Kane”?



AMV: Cidadão Kane levava uma desvantagem na época, que ninguém notou até hoje. O elenco era todo de atores desconhecidos. E todo mundo que gostava de cinema era muito ligado em atores. Cidadão Kane estreou com essa desvantagem, mas eu achei o filme muito interessante. Gostei muito. Só vim a rever e a entender melhor já depois de ser crítico, com uma cópia que a RKO ia destruir. Depois dos cinco anos de censura, os filmes eram destruídos. Foi em 47, quando eu já era crítico. Eu comecei a ser crítico em 46. A publicista da RKO, que era minha amiga, passou para mim vários filmes que iam ser destruídos. Eram filmes de nitrato.



Como foi que o senhor começou a escrever sobre cinema? O senhor é médico, não é?



AMV: Sou. Minha especialidade é clínica médica. Mas por que essa surpresa toda de um médico começar a escrever sobre cinema?! Há médicos que são escritores, pintores, que escrevem para teatro.



Não tenho nada contra. Acho até aconselhável que médicos escrevam sobre a condição humana, como Tchecov.



AMV: Molière não aconselhava isso não (risos). Ele falava mal dos médicos nas peças dele. Voltaire também tinha horror a médicos. Mas naquela época... A medicina só veio mesmo a existir no século XIX. Antes, eram aquelas sangrias... Voltaire disse que viveu até uma certa idade porque escapou dos médicos, embora ele tivesse um médico. A medicina realmente evoluiu a partir do Século XIX, quando se descobre o micróbio.



Como o senhor chegou ao jornalismo?



AMV: Como é que se chega a algum lugar?! Ou levado por alguém...



O senhor foi levado por alguém?



AMV: Evidentemente.



(Estão presentes na entrevista Isadora, uma das filhas de Moniz Vianna, e o neto Eduardo, filho de Isadora, o neto favorito do avô. Ele tem três filhos e seis netos.)



Isadora: O senhor devia contar, papai, a influência que o senhor teve da sua família.



AMV: É verdade. A influência da minha família foi enorme. Principalmente a influência do meu tio Edmundo Moniz, que tinha uma grande biblioteca. Toda a família morava junta. Eu fui criado sentado à beira de bibliotecas. A biblioteca da minha avó, a biblioteca do meu tio Edmundo e a biblioteca do meu tio-avô, Gonçalo Moniz, na Bahia. Eu sou baiano, mas vivi quase toda a minha vida no Rio.



O senhor veio para o Rio com quantos anos?



AMV: Eu vim com um ano, mas depois voltei e fiquei lá mais um tempo. Voltei com 11 anos para o Rio. Mas me sinto baiano. Tenho uma filha que se casou com baiano e tenho netos baianos. Mas como é que a gente gosta de uma coisa? Como é que podemos precisar isso? Eu lia furiosamente, desde os meus nove, dez anos. Eu vivia cercado de livros. Comecei a querer fazer a minha biblioteca, que, no começo, era muito pequenininha. Mas, quando eu tinha uns vinte e poucos anos, já tinha uma biblioteca, pois todo o dinheiro que eu tinha eu comprava livros. Mas muitos livros eu não precisei comprar, pois minha avó ou meu tio Edmundo tinham. A influência do meu tio foi muito grande sobre mim. Ele me fez inclusive gostar de literatura clássica, de literatura grega, de filosofia grega. Hoje eu tenho uma biblioteca sobre isso. Até recentemente, eu lia muito sobre a Grécia. A melhor coisa que existe... Eu trabalhei com o Otto Maria Carpeaux, no Correio da Manhã. Ele era meu amigo e me dizia: “A melhor coisa que existe não é ler, mas reler!” E realmente eu tenho a impressão de que reli a metade da minha biblioteca. Há livros que eu li e reli várias vezes. Hoje eu estou lendo menos, pois, de um ano para cá, fiquei doente. E também passei a ir muito menos a cinema a partir de uma certa idade. Acompanho cinema. Tenho que acompanhar por causa do Eduardo, meu neto favorito.



Eduardo: Ele ficou quase vinte anos sem ir ao cinema. O primeiro filme que ele foi comigo depois desse tempo foi De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick.



E o senhor gostou?



AMV: Detestei.



Eduardo: Nós detestamos!



AMV: E eu gosto de vários filmes do Kubrick. Eu acabei revendo toda a obra do Kubrick. A gente acaba revendo. Um filme passa na televisão e a gente acaba revendo. Acho que o grande filme dele é The Killing (O Grande Golpe), aquele do assalto ao hipódromo.



Mais do que “Laranja Mecânica”?



AMV: Não gosto muito, como também não gosto muito de Lolita. Do Kubrick, gosto muito de O Grande Golpe e Glória Feita de Sangue. Fora do estilo dele, gosto de Spartacus, que é um filme muito bem feito, muito bem interpretado.



Mas em ”Spartacus” ele entrou no meio de projeto, como diretor convidado.



AMV: Ainda bem. Os diretores convidados, às vezes, são os melhores. Spartacus era um filme para o Anthony Mann, que começou, mas acabou sendo substituído pelo Kubrick. Eu tenho muito medo de filme de autor.



O que o senhor pensa do chamado “cinema de autor”?



AMV: Eu não sei nem o que é um autor de cinema. Quem é o autor no cinema? É quem escreveu a história? Às vezes a gente gosta de um filme por causa da história, não é? Ninguém gosta de uma história horrorosa, sem pé nem cabeça, mesmo que tenha um diretor que diz: “Eu sou um autor!” Para mim, essa teoria de “cinema de autor” é furada, embora eu tenha que reconhecer que, em certos filmes, poucos, a gente reconhece o estilo do diretor.



Cinema é, sem dúvida, uma arte coletiva. O senhor acha que o chamado “cinema de autor” é uma praga que a nouvelle vague lançou e que permanece até hoje?



AMV: Acho que foi uma brincadeira que foi levada a sério por muito pouca gente. Por um enxame de críticos que havia naquela época e o público nem tomava conhecimento disso. Aliás, o público nunca tomou conhecimento de uma porção de coisas. O “cinema de autor” para mim não tem a menor importância. Eu pergunto o seguinte: você entra num filme, começa a assistir e, depois de uns 15, 20 minutos, você diz quem é o diretor. Quantas vezes isso acontece? Rarissimamente. Vamos pegar um filme de Hitchcock. Pode ser um filme de Hitchcock, mas também pode ser de um imitador. É o que mais existe por aí: imitadores de Hitchcock.



Brian De Palma, por exemplo, é um imitador de Hitchcock.



AMV: É, mas Brian De Palma é tão escandaloso que a gente acaba se divertindo. Agora, você entra num filme de John Ford e logo descobre que é John Ford. E ele não tem imitadores porque tem um estilo próprio que ninguém consegue imitar. Com alguns diretores é assim. Com Hitchcock, não é assim. Com Frank Capra, na época dele, ninguém conseguiu imitá-lo. Ninguém conseguiu imitar aquela atmosfera que ele criava. Isso durante um certo período de tempo não muito grande.



Mas num filme de Jean-Luc Godard, um diretor que o senhor não gosta e que é um dos papas do chamado “cinema de autor”, você entra e logo percebe que está assistindo a um filme de Godard.



AMV: Não. Se você entrava em Acossado, você não sabia que era um filme de Godard. Tá certo, pois esse foi um dos seus primeiros filmes. Mas se você entra num filme louco completamente... Se o ator estiver fora do quadro... Aí você pode dizer: “Deve ser um filme de Godard!” Não é? Porque está tudo fora do lugar! Deve ser de Godard! Acho que outro não tem coragem de fazer isso: colocar dois atores conversando numa mesa, um numa cabeceira e outro na outra cabeceira, e a câmera pegando só o centro da mesa. Pronto! Isso só quem faz é Godard!



Mas esses cineastas iconoclastas das convenções não são importantes para a própria renovação da linguagem cinematográfica?



AMV: Não renovam. Renovaram o quê?



Várias renovações que Godard introduziu acabaram sendo absorvidas pelo cinema comercial. Os cortes de tempo...



AMV: Eu nunca observei isso não. Godard, para mim... Foi você que usou a palavra “praga”... Ele foi mesmo uma praga. Mas só não foi praga porque não pegou. Hoje, até os antigos godardianos não dão mais bola para ele.



O senhor acha que o cinema é uma arte? Uma arte industrial?



AMV: É uma arte industrial. Todas as artes estão se tornando ou comerciais ou industriais. Mas o fato de o cinema ser uma arte industrial não depõe muito contra ele. A arte pela arte não existe! Se existe, não prospera. O cinema teve que cumprir a trajetória de todas as outras artes. É claro que se baseando nelas também. O cinema se baseia na literatura. O cinema utiliza música. O cinema utiliza técnicas de teatro também. O cinema é uma arte! Não vamos ficar discutindo isso hoje porque essa foi uma das grandes discussões da década de 20. Abel Gance tomou à frente para defender a idéia de que o cinema é uma arte!



O senhor vê alguma relação entre o cinema e a psicanálise? Os dois surgiram num momento em que a humanidade começava a investigar os mistérios da mente humana.



AMV: Não vejo relação.



E o surrealismo? “Um Cão Andaluz”, de Luis Buñuel e Salvador Dalí, trouxe uma das imagens mais emblemáticas da História do Cinema, que é aquele plano do corte no olho que nos sugere as imagens dos sonhos, as imagens do nosso inconsciente escorrendo do fundo de nossas retinas.



AMV: O surrealismo também pode existir em outras artes. Dos “ismos”, o surrealismo é o último. Todos os outros são anteriores: o impressionismo, o dadaísmo...



O senhor gosta dos filmes de Buñuel?



AMV: Gosto de várias coisas dele. Gosto de L’Âge d’Or (A Idade do Ouro) . Gosto de Viridiana. Acho Um Cão Andaluz uma brincadeira. É divertido, mas é muito Dalí. Aliás, L’Âge d’Or é também meio uma brincadeira. Naquela época, Buñuel e Dalí se confundiam. O corte no olho é uma provocação. Exibicionismo e provocação existem em todas as artes. E faz sucesso, não porque as pessoas gostam, mas porque se assustam com aquilo, cortar o olho, e todo mundo fica falando. A imagem do corte do olho é uma imagem bonita? Não!



Mas depois de vê-la, a imagem permanece de maneira indelével na nossa memória.



AMV: Mas quer dizer alguma coisa? Não! Mas é como você disse: ninguém esquece.



O senhor gosta mesmo de filmes que contam histórias, não é verdade?



AMV: Por exemplo: Aurora, de Murnau, é um filme maravilhoso! Conta história. Cidadão Kane conta história. O Delator conta história. Les Enfants du Paradis conta história. Quais são os filmes que não contam histórias? São experiências, como alguns filmes de Man Ray, que não contam histórias. São bonitos, têm uma imagem que a gente acha bonita, mas e aí? Aurora é melhor! Aurora é outra coisa! Então é isso! Um filme como Aurora, ou como outros, que quando termina a gente está chorando, como eu chorei... Eu choro em vários filmes. Acho que outras pessoas choram também e muitas confessam. Outras não têm coragem de confessar. Quando eu vi Aurora pela primeira vez, terminei chorando e toda a platéia estava chorando.



O cinema deve provocar emoção ou reflexão?



AMV: Pode provocar as duas coisas.



Como Brecht, Godard queria boicotar esse ilusionismo catártico da emoção. O senhor acha mesmo que é possível emocionar e fazer pensar ao mesmo tempo?



AMV: É possível. Você não se emociona sem pensar. A emoção e a reflexão podem caminhar juntas. Sem pensar, você não consegue nada, não chega a lugar nenhum.



Mas tem que se emocionar?



AMV: Pode ou não. Eu acho melhor me emocionar como eu me emocionei em Aurora ou em Como Era Verde o Meu Vale do que não me emocionar.



“Aurora” é uma prova de como o surgimento do som travou muita coisa que estava sendo experimentado com a imagem nas primeiras décadas do cinema, durante o cinema mudo. O senhor concorda com isso?



AMV: Não penso assim. O advento do som atrapalhou o cinema inicialmente. Muito. Mas, menos de dois anos depois, tudo isso já estava sendo superado. E foi sendo superado gradativamente. O som, praticamente, só dominou o cinema em 1929. Surgem os primeiros homens de cinema que transcendem essa barreira do som. No começo, foi aquela confusão, ninguém sabia como fazer o som. Aí veio o Ernst Lubitsch, veio o Rouben Mamoulian, veio o Josef Von Sternberg, veio o Howard Hawks com Scarface. Vieram muitos. Veio o musical, que era impossível no cinema mudo e que não chegava a ser um gênero no começo do cinema falado porque era só colocar a câmera diante do palco e filmar a dança. Depois veio o Busby Berkeley, que era um gênio! Então toda a linguagem que se entende como a do cinema, até hoje, ela vem do cinema mudo. O cinema mudo, sobretudo nos últimos anos, estava no máximo. Não foi só Aurora, que é de 1927, 28, por aí. Teve também O Sétimo Céu, os filmes de Sternberg, O Anjo Azul e vários outros. Tem o grande expressionismo alemão, que correu na década de 20 até o começo dos anos 30.



O que o senhor pensa do cinema soviético. Sergei Eisenstein, Dziga Vertov...



AMV: Vertov, não! Vertov eu coloco de lado. Eisenstein, Pudovkin e Dovjenko. São os maiores.



Mas um filme como “O Homem com a Câmera”, de Dziga Vertov, é uma obra-prima que é um manifesto contra o cinema de ficção. Talvez o maior documentário de toda a História do Cinema.



AMV: Nunca me comoveu. Nunca me interessou muito. Mas Eisenstein é um grande diretor. Mãe, do Pudovkin, é um grande filme. Dovjenko tem filmes bonitos, poéticos, sobretudo Terra. Até o primeiro filme de Eisenstein, Greve, eu acho muito bom, mas é muito pouco visto, pois todo mundo só fala de O Encouraçado Potemkin, Outubro e Ivan, o Terrível, que eu já não acho que seja Eisenstein.



O senhor acha que as teorias da montagem de Eisenstein não estão bem resolvidas em “Ivan, o Terrível”?



AMV: As teorias de montagem de Eisenstein começam em Greve e chegam ao seu apogeu em O Encouraçado Potemkin e Outubro.



E o neo-realismo italiano? É uma estética “povera” que ainda hoje exerce grande influência no cinema contemporâneo. O cinema iraniano que é feito hoje é muito influenciado pelo neo-realismo italiano, com a utilização de atores não-profissionais.



AMV: Não me atrai. O neo-realismo tem vários filmes bons. Mas dizer que um filme é bom porque é neo-realista, isso eu acho um absurdo como se fazia!



E Luchino Visconti?



AMV: Visconti é um neo-realista em alguma coisa, mas no restante ele é um dândi do cinema.



Mas “La Terra Trema” é um filme neo-realista.



AMV: Eu acho muito chato. É um filme muito difícil de suportar. Eu só gosto de um filme de Visconti, que é Rocco e Seus Irmãos. Eu não sou muito fã de Visconti. O Leopardo é um filme bom, mas está num nível que qualquer cinema faz, qualquer cinema que tenha um percurso.



E o expressionismo alemão?



AMV: Esse foi um grande momento do cinema.



Por quê?



AMV: Os “porquês” não são respondíveis. Não sei dizer... Acho importantíssimo... Acho que influenciou muito o cinema. Um filme como A Última Gargalhada, de Murnau, é uma obra-prima mesmo. Há outras. Variété, de Ewald-André Dupont, por exemplo. Depois muitos expressionistas foram para Hollywood, como Murnau. Dupont foi também, fracassou, voltou e depois nunca mais acertou a mão.



E o cinema contemporâneo?



AMV: Não acompanho.



Mas seu neto Eduardo me disse que o senhor gostou de ”Pulp Fiction”, de Quentin Tarantino.



AMV: Gostei mesmo. Achei um filme bem interessante. Kill Bill eu detestei.



Por quê?



AMV: Não gosto de “porquês”.



Isadora: Pai, o senhor gosta muito de Woody Allen, não gosta?



AMV: Muito. O que eu mais gosto é Hannah e Suas Irmãs. Acho uma beleza de filme. Com todas as qualidades dele e mais ainda com todas as qualidades humanas que o filme tem. Também acho A Rosa Púrpura do Cairo um ótimo filme. Muito bom, embora se pareça muito com um filme de Buster Keaton, que foi um gênio do cinema. Agora não me lembro o nome, mas os dois se parecem. A premissa dos dois filmes é a mesma: sair e entrar da tela. Eu revi há pouco tempo toda a obra de Buster Keaton, um filme atrás do outro. E aí confundo um filme com outro.



Woody Allen é um grande contador de histórias.



AMV: O que é o cinema sem história? É uma coisa muito difícil. É uma experiência.



Mas “Um Cão Andaluz” é um filme curto que mudou a História do Cinema...



AMV: Não mudou História nenhuma! Nunca vi um filme mudar a História do Cinema.



Um filme pode influenciar gerações.



AMV: Quem? Buñuel? Não vejo toda essa influência.



Glauber Rocha influenciou várias gerações.



AMV: Glauber?! Nós estamos falando em cinema, em alto cinema! Terra em Transe é um filme de que não gosto nada! Eu gostei de Deus e o Diabo dentro do panorama do cinema brasileiro. É diferente.



O que o senhor gosta dentro do cinema brasileiro?



AMV: Muito pouca coisa. E também não gosto de falar sobre isso.



Isadora: Mas o senhor gosta de O Cangaceiro, do Lima Barreto!



AMV: Eu gosto de O Cangaceiro e acho o Lima Barreto um gênio, que não conseguiu se expressar pelo temperamento dele e pela situação do Brasil que não era boa para cinema.



E Humberto Mauro?



AMV: Humberto Mauro tem um papel importante no começo do cinema, tentando criar um cinema no Brasil. Não conseguiu. Ele fez aqueles filmes no começo da década de 20 e começo da década de 30 e depois parou.



E Mário Peixoto, de “Limite”?



AMV: Eu conheci muito, pois me dava muito com ele. Gosto de Limite. É uma experiência, uma daquelas coisas daquela época.



Que outro diretor brasileiro o senhor gosta?



AMV: O Walter Hugo Khoury tinha coisas boas.



O senhor gosta de “Noite Vazia”?



AMV: Cai um pouco, mas eu gosto. Eu gosto nos filmes do Khoury o cuidado que ele tinha com a produção, com o lado visual. Ele era um diretor cuidadoso.



O senhor era amigo do Mário Peixoto?



AMV: De todos eles. Também me dava muito com o Khoury, com o Lima Barreto. O Lima Barreto dormia aqui em casa. Foi um grande amigo. Carlos Hugo Christensen foi também um grande amigo. Eu fui amigo de vários diretores. Gosto muito do Walter Lima Júnior.



O que o senhor pensa do cinema novo?



AMV: Palhaçada.



Mas não foi uma tentativa de focalizar um Brasil que não era mostrado para nós, brasileiros?



AMV: Eles não tinham preparo para fazer cinema.



Então por que os diretores do cinema novo foram reconhecidos e premiados na Europa, em festivais como Cannes e Veneza?



AMV: Não há tantos prêmios assim como vivem alardeando por aí.



Glauber ganhou vários prêmios em Cannes.



AMV: Não ganhou vários prêmios, não.



Glauber ganhou prêmios em Cannes, com “Deus e o Diabo” e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”. “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, também foi premiado em Cannes.



AMV: Foram prêmios marginais, não os prêmios principais. O maior prêmio conquistado pelo cinema brasileiro em Cannes foi a Palma de Ouro para O Pagador de Promessas, do Anselmo Duarte.



O senhor gosta do filme?



AMV: É um filme bom. Lima Barreto também foi premiado em Cannes com O Cangaceiro. Ele também foi premiado em Veneza com o documentário Santuário.



O senhor acha que cinema tem que ter preparo na produção?



AMV: Acho que tem que ter, sim! Essa coisa de uma idéia na cabeça e uma câmera na mão é uma bobagem! E deu no que deu, com muitas monstruosidades que foram feitas.



O senhor não citaria nenhum filme importante produzido durante o cinema novo?



AMV: Eu não gosto de falar sobre o cinema novo. Não é um cinema que eu goste. Por isso não gosto de falar.



E o chamado cinema marginal? O senhor gosta de “O Bandido da Luz Vermelha”, de Rogério Sganzerla?



AMV: O Bandido da Luz Vermelha é um filme interessante. Mas está naquele nível... O máximo que consegue é ser interessante. Mas ser bom mesmo, ter uma solidez artística... Estamos longe! Já estivemos mais perto com o expressionismo alemão, com Cidadão Kane, com Aurora, com Como Era Verde o Meu Vale, com Les Enfants du Paradis, com os primeiros filmes de Fellini, tudo isso. Vou repetir: com os primeiros filmes de Fellini, porque depois ele entrou naquela de querer fazer uma imagem diferente de todo mundo.



De quais filmes de Fellini o senhor gosta?



AMV: Gosto muito de I Vitelloni (Os Boas-Vidas), La Strada.



“Noites de Cabíria” é um grande filme.



AMV: Grande, não. É um bom filme. O melhor filme de Fellini é La Strada” I Bidone (A Trapaça) também é muito bom.



”La Dolce Vita” é uma obra-prima.



AMV: O tempo não foi favorável com La Dolce Vita. Na revisão, o filme perde muito.



Eu revi o filme recentemente e acho que ele sobrevive muito bem nos dias de hoje, pois é um vaticínio de toda essa era midiática que estamos vivendo. É um grande afresco de uma sociedade decadente...



AMV: E o filme é mais ou menos isso. E é um filme bom, muito bom.



O cinema brasileiro produziu alguma obra-prima para a História do Cinema?



AMV: Acho que não.



O senhor poderia citar cinco obras-primas da História do Cinema? Os críticos costumam fazer muitas listas dos filmes mais importantes da História do Cinema.



AMV: Eu tenho verdadeiro horror a essa história de quais são os dez mais! Já me pediram várias vezes, mas eu, por uma questão de educação, respondi. No fim de vinte anos, eu fui olhar as minhas listas e nenhuma era igual à outra. Havia alguns filmes que figuravam em todas.



Quais, por exemplo?



AMV: Você está com muita pergunta de fã.



Isadora: Mas, pai, quais eram os filmes que figuraram em todas as listas?



AMV: Aurora, O Delator, Cidadão Kane. São três filmes que figuraram em todas as listas. Mas é muito difícil dizer que esse filme é melhor do que esse outro!



O senhor tem toda razão. Arte não é esporte! Não dá para colocar em competição. Mas os filmes entram em festivais competitivos e, por exemplo, em Cannes, “O Pagador de Promessas”, do Anselmo Duarte, estava competindo com “Oito e Meio”, de Fellini, e “O Processo de Joana d’Arc”, de Robert Bresson, e acabou vencendo essas obras-primas da História do Cinema. Mas acho que o senhor está certo: é equivocado colocar os filmes para competir. No entanto, a partir do momento em que você coloca um filme num festival competitivo, você tem que topar as regras do jogo. Mas, mudando um pouco de assunto, como o senhor vê o cinema contemporâneo? O senhor me disse que tem horror a ver pessoas comendo pipoca nas salas de exibição.



AMV: O que é o cinema hoje? Está nos shoppings. Nos multiplexes, que são shoppings. Quer dizer: é uma loja onde tem um lugar reservado para vender pipoca. Nas cadeiras, há o lugar para você colocar o copo de coca-cola. E você está no shopping. Comprou ali uma camisa, um negócio. E agora vamos entrar nessa loja aqui que é um cinema. Isso é o fim!



O senhor acha que banalizaram a fruição da arte cinematográfica?



AMV: Completamente. Para um filme escapar de tudo isso, e ainda ser bom, é muito difícil! Há pouco tempo eu vi um filme bom, embora dentro dessa coisa que a gente está falando, que foi O Pianista, de Roman Polanski.



Qual foi a última vez que o senhor foi ao cinema?



AMV: Não me lembro.



Mas o senhor ainda vai às salas grandes, ou prefere ver os filmes em casa?



AMV: Quase tudo que eu vejo é em casa e eu prefiro. Hoje eu prefiro.



Mas cinema é uma arte que foi feita para ser fruída coletivamente, numa tela grande.



AMV: Não sei. Muitos filmes que eu vim a conhecer numa tela pequena, em televisão – porque, quando foram feitos, eu não era nascido ou era muito pequeno – me emocionaram muito na tela pequena mesmo.



O senhor talvez tenha razão: depende mesmo do filme. Há filmes que não sobrevivem na tela grande e, às vezes, funcionam na tela pequena.



AMV: Eu não sei o que é funcionar na tela pequena. Mas é claro que um filme feito como um grande espetáculo perde muito na tela pequena. Mas os outros, não. Filmes intimistas não perdem nada em tela pequena. Ou perdem muito pouco. Claro que numa boa televisão, não naquelas televisões pequenininhas.



O senhor não acha que é equivocado dividir o cinema em gêneros, na medida em que as grandes obras não se encaixam em nenhum deles?



AMV: Há filmes que se ajustam a determinados gêneros. E há outros que não têm gênero. Por exemplo: Scarface é um filme de gangster, não é? Um Americano em Paris é um musical, não é? Mas Cidadão Kane, o que é? Qual é o gênero? Não tem. E não precisa ter.



”Cidadão Kane”não é um drama?



AMV: Drama não é gênero. Não é como uma comédia.



“Cidadão Kane” é um drama construído com a linguagem de um documentário.



AMV: É um drama porque não é uma comédia. E é uma comédia porque não é um drama. Então você está dividindo o cinema em dramas e comédias.



O que o senhor pensa da linguagem do documentário? O documentário brasileiro está numa fase muito fértil.



AMV: Não sei. Documentário não é o meu gênero favorito. Não me atrai. Um documento histórico, educativo, isto sim. Mas documentário para fazer arte?! Vai fazer arte de outra forma! Documentário para informar, isso é perfeito! Para registrar, para informar, aí sim. Pelo que nós conversamos, pensamos muito diferente sobre cinema.



Com certeza. Mas compartilhamos uma paixão muito grande pelo cinema. Mudando um pouco de assunto, o senhor não gosta de dar entrevistas, de ser filmado e tem muita resistência ao gravador do seu lado. O senhor tem algum tipo de rejeição à tecnologia?



AMV: Toda pessoa da minha idade tem resistência à tecnologia, ou melhor, aos excessos tecnológicos. Tudo digitável... Tenho uma enorme antipatia por isso! Daqui a pouco vou começar a achar o mundo inabitável. Por exemplo, você liga o telefone e não fala mais com ninguém. O elemento humano está desaparecendo. Você liga e aí vem uma voz que te diz para discar 1 para ver se a conta está atrasada... Disque 2 para... Até disque 7, porque não tem ninguém para falar com você. Isso causa enorme desemprego e toda essa balbúrdia social que a gente vive. E essa chateação terrível do disque 1, disque 2, disque 3, disque 4... E a falta de contato humano. Como é que você reclama uma coisa? Não consegue.



O senhor tem celular?



AMV: Tenho. Celular eu acho importante. Porque às vezes as pessoas precisam ser localizadas com certa urgência. Não é para conversar, não. Para marcar encontros. Para falar dois, três minutos. Celular é muito importante!



A tecnologia mudou a linguagem do cinema contemporâneo. Sobretudo a tecnologia digital. Antigamente, só se fazia filmes em película. E aí veio o vídeo e hoje estamos aí com a tecnologia digital. Há um realizador russo contemporâneo, chamado Alekssandr Sokúrov, que fez um filme, “Arca Russa”, todo rodado no museu Hermitage com uma câmera High Definition, que é um plano-seqüência de 96 minutos para contar três séculos de História da Rússia, com cerca de três mil figurantes, duas orquestras sinfônicas e o corpo de baile do Balé Kirov. Não sei se o senhor viu.



AMV: Não vi. Mas não vejo nenhuma vantagem num plano-seqüência.



Mas e a experiência de Hitchcock em “Festim Diabólico”?



AMV: Hitchcock fracassou. É um dos piores filmes dele. E foi considerado na época um fracasso.



O senhor me disse que entrevistou Robert Bresson. Ele esteve no Rio?



AMV: Não, foi na França. Eu estive lá, em Paris.



E como foi a entrevista?



AMV: Bresson não tem quase o que dizer. É de uma timidez absurda. Eu sou tímido, ele é muito mais. Ele não me deixou muita lembrança, não. Eu entrevistei vários diretores franceses: Jean Renoir, René Clair... Fui à Europa fazer algumas entrevistas para o Correio da Manhã.



Acho muito interessante o cinema de Bresson, pois ele foi um cineasta católico que acreditava que a arte cinematográfica tinha o poder de registrar instantes de epifania, de manifestação divina, em situações aparentemente banais do cotidiano. Bresson criou uma nova sintaxe para a linguagem do cinema...



AMV: Eu concordo com Orson Welles. Ele estava em Paris e o levaram para vários lugares e depois para um cinema. Orson Welles perguntou: “Mas qual é o filme?” Disseram para ele: “Vamos até lá e a gente vê o filme que está passando!” Isso é verdade! Orson Welles entrou, se sentou e o filme começou. De repente, aparece na tela o nome do diretor do filme. Orson Welles se levanta e diz: “Meu Deus, um filme de Bresson!” E saiu do cinema. Ele não ia agüentar.



Eu gostaria que o senhor falasse agora um pouco da crítica cinematográfica.



AMV: Não quero! Por que um crítico vai falar sobre a crítica?



O senhor acompanha a crítica de cinema de hoje?



AMV: Que crítica?



O senhor é uma espécie de pai para várias gerações de críticos.



AMV: Mas que crítica existe hoje? Não existe!



O senhor acha que a crítica cinematográfica reflexiva acabou no jornalismo cultural?



AMV: Você acha que existe uma crítica hoje?



Acho que há, sim, críticos que batalham para dignificar a crítica cinematográfica no jornalismo cultural nos dias de hoje.



AMV: Por exemplo, meu neto Eduardo começou muito bem! Eu acho que, se quiser, ele pode ser um bom crítico, se valer a pena ser crítico hoje. Mas eu acho que não vale. Ele começou muito bem porque eu disse a ele e ele não acreditou, nem minha filha acreditou, que as primeiras críticas que ele escreveu, com 17 anos, se eu comparar com as primeiras que eu escrevi com 20, 21 anos, as críticas dele são melhores. Ele começou melhor do que eu comecei. Isso não quer dizer que eu cheguei a ser um bom ou um mau crítico. Isso não interessa. Ele tem tudo para ser um bom crítico. Tomara que não seja!



Por que tomara que não seja?



AMV: Para quê crítica de cinema hoje? Se o cinema é isso que a gente vê por aí? Como profissão, para quê?



Eu discordo do senhor: acho que o processo artístico só se completa realmente no olhar erudito do crítico, que vê nas obras muitas coisas que o próprio realizador não consegue ver, pois o crítico amplia e contextualiza a obra historicamente.



AMV: Todo mundo sabe disso! O crítico é essencial para que a arte prossiga, mas essa arte que está aí hoje não precisa de crítica! Não é só no cinema, não. A decadência... O declínio... Ou seja a palavra que você preferir. O teatro existe hoje como existia? Os grandes nomes de teatro, quais são? No Brasil, nenhum!



Mas o senhor está falando de dramaturgos, encenadores ou críticos teatrais?



AMV: Críticos, não! Não vou ficar aqui pensando em crítico de teatro! Existe algum dramaturgo no momento? Existe algum Thornton Wilder? Mesmo um Tennessee Williams? Não existe atualmente. E, se existir, é só na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Fora daí, não existe mesmo. A música acabou bem antes das outras artes. Quando é que acabou a música erudita? No começo do Século XX. Os últimos grandes músicos foram Ravel, que morreu em 39, por aí, e Richard Strauss, que viveu bem mais, acho que morreu na década de 50. Depois deles, quais são os grandes músicos que existem no mundo? Eu gosto de Charles Messiaen, tudo bem, mas aquele Século XIX cheio de músicos não existe mais, existe? Não se repetiu no Século XX. Então a música acabou! E a música popular virou o quê? Rock pauleira, essa porcaria! A gente não entende a letra e nem precisa. E é só barulheira e levantar os braços assim. (Levanta os braços.) Acabou. A canção americana. Existe um Cole Porter? Existe um Irving Berlin? Existe um Richard Rodgers? Existe algum?



E no cinema? Qual foi o último grande cineasta?



AMV: Nem sei quem foi.



Isadora: Akira Kurosawa?



AMV: Quando morreu, Kurosawa já não era o mesmo. Mas foi um grande diretor.



O senhor gosta de “Rashomon”?



AMV: Não só Rashomon. Vários filmes dele são muito bons. É um grande diretor.



O senhor gosta de cinema japonês?



AMV: Eu não faço esse tipo de divisão: gostar de cinema japonês!



O senhor gosta dos autores?



AMV: Detesto essa palavra: autor. Eu gosto de filmes! Eu posso gostar de certos diretores. O cinema japonês a gente sempre conheceu pouco, por isso não se deve falar muito sobre cinema japonês... Os paulistas até que conhecem mais. Pensam que conhecem mais do que realmente conhecem. Bem, eu gosto de filmes de Kurosawa... Qual é mesmo o nome do outro diretor japonês que fez aquele filme...



Mizoguchi?



AMV: Não, Mizoguchi eu acho um chato!



Oshima? Ozu?



AMV: Mas isso não tem muita importância. De Kurosawa eu gosto muito.



O senhor às vezes fala como se a arte, a grande arte estivesse morta.



AMV: A arte não está morta, porque a arte existe. Porque Ésquilo não está morto! Nem Eurípedes! Nem Shakespeare! Então a arte não está morta! Não é porque uns pé-rapados estão aí fingindo que são artistas, não é por isso que a arte está morta. O que a gente precisa meter na cabeça é, em primeiro lugar: não se deve exigir de nenhuma arte uma inovação diária! Não se terá! Não se deve exigir que a arte seja sempre uma grande arte, porque ela não será! Ela atravessará períodos de decadência. Agora, com o mundo atual, tecnológico como está, a arte está muito ameaçada. Você vê: está até ocorrendo uma regressão muito grande... Vamos voltar agora a falar de cinema. Há muitos anos se dizia que o q.i. do cinema era de 10, 11 anos. Até 8 anos, era o que diziam. Isso era uma certa injustiça. Hoje, o q.i. do cinema qual é? Histórias em quadrinhos... Estão filmando todas as histórias em quadrinhos! Estão filmando videogames! Os videogames estão virando grandes filmes. Então o q.i. do cinema hoje qual é? Está descendo. Não é mais de 12, 14 anos, como era na década de 40.



O cinema hoje está sendo utilizado como uma mera peça publicitária para se vender parques temáticos.



AMV: Por isso esses filmes não estão mais nos palácios, mas nas lojas dos shoppings. O cinema hoje é essa tristeza. O lugar dele é o shopping. Não é mais aquela coisa de abrir a cortina... O Odeon, na Cinelândia, no centro do Rio, conserva um pouco isso e é muito elogiado. Mas é o único.



O senhor estava falando de arte...



AMV: Não se deve exigir tanta arte do cinema.



A arte moderna deu margem a muitos embustes, mas também abriu novas possibilidades de ver o mundo...



AMV: Isso sempre acontece. Já houve arte moderna em várias fases da humanidade. Moderna logicamente para aquela época, que hoje já ficou velha. A arte moderna fica velha.



O senhor viu alguma coisa do cinema brasileiro contemporâneo? Viu “Cidade de Deus”?



AMV: Não. Não vi nada.



Gostaria que o senhor falasse um pouco dos festivais de cinema que organizou no Rio, no Copacabana Palace.



AMV: Não, estou cansado de falar sobre cinema. Não quero mais falar sobre cinema!



 



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