Em O Céu de Suely , os atores emprestam seus próprios nomes às personagens que interpretam e isto diz muito sobre este novo filme de Karim Aïnouz. Devidamente assessorado pela coach Fátima Toledo, o diretor buscou um registro de atuação distante da representação estilizada e próximo de uma naturalidade construída. Mas esta construção deve, de preferência, permanecer invisível aos olhos dos espectadores, de modo a fazê-los “esquecer” de que estão assistindo a atores interpretando.
A questão ator/personagem já está presente no título do filme. Afinal, Suely é a personagem criada pela protagonista, Hermila, a partir do momento em que passa a se oferecer como prêmio complementar ao vencedor de uma rifa de whisky (perspectiva que aponta para o título anterior do filme – Rifa-me ). Ao adotar o codinome Suely, Hermila parece testar outras possibilidades pessoais, o que aponta para o conceito de personagem como outro do ator e não como instância dissociada dele. Mas se Suely é a personagem da Hermila da ficção, esta também é uma construção da Hermila atriz (Hermila Guedes), que procura em si algo da moça que volta a Iguatu, sertão do Ceará, e, confrontada com a falência de seu projeto romântico (imagem que abre o filme, não por acaso filmada em textura diversa), começa a se coisificar.
A determinação em abolir traços de empostação no trabalho dos atores reflete um desejo de Aïnoiz em suprimir qualquer intervenção artificializante entre público e obra. Não por acaso, todas as cenas estão repletas de comentários casuais que preservam um certo frescor de improvisação. “Peraí que eu estou de saia”, diz Hermila, num dado instante, antes de pegar carona na moto do ex-namorado, João (João Miguel). O cineasta também procura trazer a platéia para “dentro” do filme através de uma câmera física, a exemplo da seqüência em que Hermila dança freneticamente num certo estado de embriaguês.
O Céu de Suely é um filme dotado de sutilezas, valendo lembrar da imagem desfocada de João chegando de moto, bem ao fundo, enquanto Hermila caminha pela rodoviária. Mas talvez o cineasta evidencie um pouco demais o seu esforço em transmitir autenticidade. Se os atores alcançam verdade interpretativa de maneira orgânica (além dos já citados, Maria Menezes, Zezita Matos e Georgina Castro), o texto subterrâneo às falas das personagens permanece à vista em determinadas passagens, como aquela em que Zezita, avó de Hermila, pergunta, com voz afetuosa, sobre a medida de sal na comida quando o que está em questão é evidentemente algo de natureza bem menos corriqueira. Além disso, Aïnouz parece propor (numa analogia, em certa medida, questionável) que a verdade pode ser encontrada numa essência, que, no caso de O Céu de Suely , seria detectada nos closes de rostos com aparência de real (na contramão das plásticas, tão em voga atualmente) e em objetos reveladores de uma escassez material relativa à situação econômica das personagens.
A concepção de algumas seqüências também parece um pouco à mostra, como a cena de sexo entre Hermila e um desconhecido, na qual a câmera registra-o rapidamente para priorizá-la, de modo a valorizar a repercussão daquela experiência nela. Um momento em que Hermila mostra-se desconfortável “na pele” de Suely, como se talvez estivesse tentando ser aquilo que não é.
# O CÉU DE SUELY
Brasil, 2006
Direção: KARIM AÏNOUZ
Roteiro: KARIM AÏNOUZ, FELIPE BRAGANÇA, MAURÍCIO ZACHARIAS
Fotografia: WALTER CARVALHO
Montagem: TINA BAZ, ISABELA MONTEIRO DE CASTRO
Música: BERNA CEPPAS, KAMAL KASSIN
Elenco: HERMILA GUEDES, JOÃO MIGUEL, MARIA MENEZES, ZEZITA MATOS, GEORGINA CASTRO
Duração: 88 minutos