Críticas


RASGA CORAÇÃO

De: JORGE FURTADO
Com: MARCO RICCA, DRICA MORAES, CHAY SUEDE, GEORGE SAUMA
05.12.2018
Por Luiz Fernando Gallego
As atualizações das épocas em que a peça original transcorria não são suficientes para fazer do filme tão atual quanto a peça ainda poderia ser.

Vianinha (Oduvaldo Vianna Filho) começou a escrever a peça “Rasga Coração” em 1971 e só a concluiu em 1974, já sabendo que tinha pouquíssimo tempo de vida. Foram os piores anos da ditadura militar sob Garrastazu Médici. O autor tinha apenas 38 anos quando morreu. A censura proibiu sua encenação e até mesmo a publicação do texto que, não obstante, recebeu o prêmio SNT (Serviço Nacional de Teatro) numa votação unânime. Só em 1979, no final do governo Geisel, que “Rasga Coração” foi encenada, com enorme sucesso e merecidas premiações. Até mesmo Nelson Rodrigues, no espectro político antagônico ao de Vianinha e que sempre o criticava, disse que se tratava de “uma das mais belas e fascinantes obras-primas do teatro brasileiro. Não posso ser mais conclusivo e definitivo do que isso”.

Ao enfocar conflitos políticos e comportamentais entre pai e filho em duas épocas diversas, por motivos óbvios, Vianinha recorreu à época da ditadura getulista (1930-1945) para mostrar a resistência ao fascismo, evitando tocar na resistência e nos horrores dos dias em que estava escrevendo sua última peça. O mesmo personagem, Manguari Pistolão, surge jovem no passado, e também aparecia em 1974 como pai de um rapaz que tinha outras preocupações, mais ligadas aos costumes: alimentação saudável (na época o "quente" era a macrobiótica), uso de drogas, ecologia, estilo de vida hippie etc. A incompreensão entre Manguari-filho com seu pai no passado, ecoava nas dificuldades de Manguari-pai na atualidade dos anos 1970.

Tantos anos depois, é bastante compreensível que Jorge Furtado e seus dois co-roteiristas, Ana Luiza Azevedo e Vicente Moreno, tenham querido preencher a lacuna dos anos de chumbo que Vianinha precisara omitir, assim como deixassem de fora o passado mais antigo da ditadura caudilhista e do integralismo, fazendo do nosso presente a atualidade do filme. Infelizmente, a caracterização do novo passado (o da ditadura militar) ficou muito aquém do que se poderia esperar. A época ficou mal definida entre o período de pior repressão assassina e os anos de "abertura lenta, gradual e segura" quando pontificaram os movimentos das "Diretas Já" e pela anistia, quase que sem repressão policial.

Outro exemplo é encontrado nas (boas) músicas escolhidas para a trilha, como “Gothan City” de Macalé e “Qualquer Bobagem” dos Mutantes – dentre outras, mas representativas da virada dos ’60 para os ‘70, portanto, mais antigas do que da virada dos ’70 para os ’80 - que parece ser o período em que o jovem Manguari Pistolão do filme se rebelava contra os militares no poder. Nesta época, a ditadura agonizava, exceto pelos espasmos de Sylvio Frota, das bombas na OAB e no Rio Centro, ausentes do enredo. Quem viveu a época estranhará a ambientação: afinal quando é este “passado”? E quem não viveu a época receberá informações vagas ou até mesmo confusas, com encenações pobres e insatisfatórias dos movimentos de rua contra a ditadura.

Se o presente não transcorre muito melhor na maior parte do filme, será apenas nos vinte minutos finais que surgem dois fortes momentos: é quando Manguari-pai tem dois diálogos fortes com o filho Luca, graças, principalmente, aos desempenhos de Marco Ricca e de Chay Suede, respectivamente. E do que existe no clímax da peça original. Nestes momentos, Drica Moraes, como a mãe do rapaz, abandona um incômodo overacting que vinha prejudicando sua participação, quase caricatural. Na verdade, a atriz enfrenta mal alguns diálogos ruins e situações absurdas - como quando a personagem supõe que a namorada do filho (Luiza Arraes) pudesse ser um parceiro homossexual do garoto, um homem. Essa mãe teria que ser muito limitada. Demais.

De um modo geral, apesar da ótima edição de Giba Assis Brasil para as alternâncias de épocas, a narrativa cinematográfica no todo soa um tanto engessada, acadêmica e artificial em várias passagens, lembrando esforços de um pretenso "cinema sério" e sem pegada de muitas décadas atrás. E é curioso também que, apesar das modificações e adaptações feitas, o roteiro tenha buscado tanta fidelidade ao original de Vianinha, e - no entanto - tenha omitido uma importante reflexão de um personagem que, no filme, surge como a moça ‘Talita’. Na peça, este personagem é um rapaz (e a modificação do personagem quanto ao gênero não é o problema que quero apontar). Ele enuncia o aprisionamento de Manguari, pai de seu colega Luca, em antigas ideias e formas de ação.

Luca já havia dito ao pai que eles se encontravam "em galáxias muito distantes uma da outra". Manguari pensa em transformar questões colegiais em fatos políticos e movimentos que possam levar a conciliações ou acordos, típicos do antigo "partidão" (PCB), enquanto o filho quer "partir para a ação" sobre ter o direito de - agora, em 2018 - ser um jovem hétero que quer vestir saia para ir ao colégio, ser vegano radical, radicalmente ecológico etc etc. A reflexão que 'Talita' não faz no filme, mas que o personagem equivalente faz na peça era: "Vocês descobriram uma verdade luminosa, a luta de classes, e pronto, pensam que ela basta para explicar tudo... a tarefa nossa não é esperar que uma verdade aconteça, nossa tarefa é descobrir novas verdades todos os dias... acho que vocês perderam a arma principal: a dúvida. Acho que é isso que seu filho quer... duvidar de tudo... e isso é muito bom: acorda e arrepia as pessoas".

Furtado e seu filme pouco arrepiam e acabam mais identificados com o engessamento de Manguari, enquanto Vianinha, ao lado de louvar aqueles que resistiram ao fascismo getulista no passado, começava a problematizar os impasses de uma esquerda engessada já nos anos 1970, sem interesse nem abertura para outras realidades e questões de um mundo em cada vez mais rápidas mutações.

Mudar as épocas no filme não foi suficiente para ecoar a capacidade de Vianinha, mesmo às portas da morte, refletir e começar uma autocrítica que as esquerdas ainda têm dificuldade de assumir mais amplamente.

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