Festas, sexo à vontade, praias e selvas exóticas, muita pobreza, nada de trabalho... Eis uns poucos elementos que definem o Brasil na mentalidade de um público estrangeiro menos informado. Esses clichês, que comportam um amplo estereótipo cultural, foram em boa parte fomentados pelo cinema – e, é bom que se diga, não somente dos EUA e da Europa. A própria produção audiovisual brasileira tem um parcela dessa culpa. Uso aqui a palavra “culpa” justamente porque o documentário Olhar Estrangeiro, de Lúcia Murat, se propõe a ser menos uma análise que um tribunal para julgar as visões distorcidas do Brasil. Tanto que um dos entrevistados chega a perguntar se a diretora pretendia mostrar o filme a algum juiz.
O tema mereceu um exame vertical e horizontal no livro O Brasil dos Gringos, de Tunico Amancio, publicado em 2000 (leia aqui minha resenha da época). O estudo ampliou e enriqueceu uma discussão bastante corrente ao descortinar as raízes históricas desses lugares-comuns e mostrar, em detalhes, como foram construídos pela câmera e pela edição de imagens. Amancio agora assina com Lúcia Murat o roteiro de Olhar Estrangeiro, que pretende tratar o assunto pelo ângulo da indústria. Com esse objetivo, Lúcia aproveitou viagens a festivais internacionais para fazer suas entrevistas e pesquisas, na França, EUA e Suécia.
A cineasta ataca com gana as suas presas, mas não creio que tenha medido bem o teor dos ataques. Nos rápidos depoimentos (tipo “povo fala”) de anônimos nos três países, ela já estimulou respostas estereotipadas ao propor palavras como “sexo”, “liberdade”, “violência”, “paraíso” etc. Na coleta desse material, assim como ao entrevistar (ou melhor, tomar satisfação de) notórios picaretas como Zalman King (diretor de Orquídea Selvagem) e Greydon Clark (Lambada, a Dança Proibida), Lúcia parecia interessada em criar um antípoda igualmente complicado: o clichê do gringo ignorante.
A estratégia, diga-se, surte alguns efeitos interessantes. É o caso do ator Michael Caine, que devolve aos brasileiros a responsabilidade por tantas fantasias: “O problema é que vocês são muito bonitos. Se quiserem ser levados a sério, como nós, relaxem e sejam feios”, diz mais ou menos assim. De maneira geral, a abordagem desse tema suscita uma curiosa descontração nos “gringos”. Lúcia tem evidentes dificuldades em aprofundar uma conversa fadada a terminar em piadas. Na verdade, ninguém parece levar muito a sério o fato de estar colaborando para um documentário sobre os clichês do Brasil no cinema estrangeiro. Eis aí mais uma manifestação do mesmo sintoma.
Como enfrentar esse dilema? Fazendo um filme-tese, como o livro de Tunico Amancio? Descorticando os filmes e pondo a nu seus mecanismos de construção de fantasias? Aprofundando a análise histórica, num modelo mais clássico de documentário? Nenhuma dessas alternativas é contemplada a contento em Olhar Estrangeiro. O filme ilustra alguns aspectos, veicula alguns poucos raciocínios esclarecedores (“esses filmes não foram feitos para passar no Brasil, mas fora dele”, diz alguém), mas não avança muito em relação ao que já se discute costumeiramente sobre o “Brasil dos gringos”.
# OLHAR ESTRANGEIRO
Brasil, 2006
Direção e argumento: LÚCIA MURAT
Roteiro: LÚCIA MURAT e TUNICO AMANCIO
Produção executiva: LUÍS VIDAL e PAOLA ABOU-JAOUDE
Fotografia: DUDU MIRANDA
Edição: JULIA MURAT
Duração: 70 minutos