Adelino Moreira morreu há quatro anos, perto de completar 85. Foi o compositor favorito de Nelson Gonçalves (autor de A Volta do Boêmio, possivelmente seu maior sucesso) e um dos maiores expoentes do que por muito tempo se costumava chamar de cafona. Gravações como a de Negue por Bethânia redimensionaram o peso da cafonice. É preciso autoridade para dizer algo como “E eu mostro a boca molhada. Ainda marcada pelo beijo seu”.
Por algum tempo, Fica Comigo Esta Noite foi um clássico da forma estúpida com que a burguesia pretendia olhar para o lúdico popular. “Terás meus beijos de amor. Minhas carícias terás. Fica comigo esta noite. E não te arrependerás.” “Ficar”, na época, não denotava a mesma coisa que hoje. Era motivo suficiente para se expulsar a filha de casa. Coisa de dançarina.
Não vi nem li a peça de Flávio de Souza, mas há no filme de João Falcão momentos de puro resgate desse tom. Essa é uma evidente característica dos dois primeiros filmes do diretor. O primeiro, A Máquina era bem mais sofisticado. Melhor construído, realizado com mais requinte. Surpreende até que Fica Comigo emane com freqüência uma teatralidade tão primitiva, que vai fulminar acima de tudo a interpretação de Vladimir Brichta. Mas na essência Falcão abraça com rigor o universo romântico que escolheu. Sabe do que está falando, o que não é pouca coisa. Adelino e Bethânia sabem, a maioria nem desconfia. Constrói magníficas seqüências, como a do transe coletivo. Mergulha sem medo no submundo dos amores corroídos e das paixões impossíveis. Mantém a chama de um cinema simples, que se levanta como um periscópio sobre a superfície da mediocridade imitativa, bradando que este não é um filme de publicitário, que o coração da gente não é uma garrafa de ketchup.
Ironicamente, são os principais coadjuvantes – em especial Alessandra Mestrini e Zéu Brito, além de um Milton Gonçalves bastante inspirado – os que mais colaboram para fazer o filme circular no espaço dramático que ele constrói. Um espaço certamente instável, onde o histrionismo – que possivelmente é parte do projeto inicial que passou por outros diretores, inclusive Daniel Filho e Jorge Fernando - parece agora um invasor indesejável.
Fica Comigo Esta Noite é assim mais rudimentar e menos autoral que A Máquina. E no entanto o autor logra impor a marca do que lhe parece essencial, o ridículo que há em todas as cartas de amor, em todas as histórias de amor. Refugia-se com sucesso no calor dessa possibilidade. Lá fora o frio é um açoite. Ao seu filme, fica devendo apenas menos comédia e mais Adelino Moreira.
# FICA COMIGO ESTA NOITE
Brasil, 2006
Direção: JOÃO FALCÃO
Roteiro: JOÃO FALCÃO, com colaboração de ADRIANA FALCÃO e TATIANA MACIEL, baseado em peça teatral de FLÁVIO DE SOUZA
Produção: DILER TRINDADE
Música: ROBERTINHO DE RECIFE
Fotografia: MAURO PINHEIRO JR.
Elenco: VLADIMIR BRICHTA, ALINNE MORAES, LAURA CARDOSO, CLARICE FALCÃO, GUSTAVO FALCÃO, MILTON GONÇALVES, ZÉU BRITO, ALESSANDRA MESTRINI