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ROUCH, O DOCUMENTÁRIO EM TRANSE

04.12.2006
Por Carlos Alberto Mattos
ROUCH, O DOCUMENTÁRIO EM TRANSE

Entre os lançamentos recentes do selo Coleção Videofilmes, estão Jaguar e Eu, um Negro, dois longas da fase de transição de Jean Rouch, quando seu cinema etnográfico desaguava no cinéma-vérité. Cada um vem acompanhado de um curta igualmente fundamental para se compreender o processo de Rouch.



Todos esses filmes testemunham a presença da ficção no âmago dos docs de Jean Rouch. Em Jaguar, assumido plenamente como ficcional, ele pediu a três imigrantes que reencenassem sua viagem de uma aldeia nigeriana até a cidade de Accra, na Costa do Ouro, futuro Gana. Filmou com grande teor de improvisação, mas sempre procurando a continuidade necessária para um filme “dramatizado”. Como em 1954 ainda não havia som direto, Rouch tirou partido dessa limitação, pedindo aos personagens-atores que narrassem e comentassem as imagens depois de montadas. O filme só seria finalizado em 1969.



O título Jaguar não se refere ao animal, mas ao carro de playboy, tomado pelos nigerianos como indicativo de beleza e status. Damouré, o galanteador que protagoniza o filme, brinca de ser “Jaguar”, ou seja, um homem que desperta a atenção de todos. A certa altura, ele finge atuar como chefe de outros trabalhadores, distribuindo ordens e, na verdade, satirizando a figura dos patrões.



Rouch parecia interessado sobretudo na idéia de representação. Uma representação destinada a exorcizar os fantasmas da colonização e do que hoje chamamos de invisibilidade social. Damouré representa “Jaguar”, assim como, em Eu, um Negro (1958), um carregador miserável e um comerciante mulherengo de Abidjan (Costa do Marfim) posam, respectivamente, de “Edward G. Robinson” e “Eddie Constantine, agente secreto americano”. Também aqui os personagens reconstruíram e comentaram, a posteriori, os diálogos travados durante as filmagens.



Os curtas que complementam os DVDs levam a “ficção” rouchiana para outro patamar. Tratam de danças de possessão, rituais em que os participantes encarnam outros personagens e entidades. Em Os Mestres Loucos (1955), um dos filmes mais impactantes da história do cinema, os Haouka em transe assumem os papéis do colonizador britânico (o governador, o “comandante cruel”, a mulher do médico, o maquinista etc). Já em Os Tambores do Passado (1971), é a presença da câmera que supostamente teria precipitado o início de um transe do gênero, bem à moda do cinema-verdade como catalisador de fatos. Nesses dois curtas, ainda que em chave mais grave, está em pauta o mesmo fenômeno da representação. Os personagens reais ficcionalizam seus papéis, e para o filme essa é uma dimensão da realidade deles, parte da sua “verdade”.



A influência desses filmes extrapolou o campo do doc. Roberto Rossellini cultuava Jaguar. Godard gostou tanto de Moi, um Noir que cogitou chamar Acossado de “Moi, un Blanc”. No Brasil, cineastas como Geraldo Sarno, Eduardo Coutinho, Thomaz Farkas, Vladimir Carvalho e Jorge Bodanzky foram diretamente afetados pelas descobertas de Rouch.



Um pouco desse legado consta no disco de Eu, um Negro, através do doc brasileiro Jean Rouch: Subvertendo Fronteiras, de Ana Lúcia M. C. Ferraz, Edgar Teodoro da Cunha, Paula Morgado e Renato Sztutman. Nele, há também depoimentos do próprio Rouch acerca de sua “etnoficção”. Na internet existe um site bastante completo sobre o cineasta.



Texto publicado originalmente no DocBlog do autor.

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