Críticas


DOSSIÊ TARANTINO: À PROVA DE MORTE (2007)

15.08.2019
Por Leonardo Luiz Ferreira
À prova de morte (2007) traduz de maneira cinemática o universo de Tarantino: música, verborragia e corpos.

Numa recente entrevista, Tarantino declarou que “o digital acabou com o cinema”, ou pelo menos, da maneira como ele imaginava a sétima arte: “Hoje ir ao cinema não é mais um grande evento. Parece que o espectador simplesmente aluga uma cadeira por duas horas”. Através dessas afirmações, fica fácil compreender porque, ainda nos anos 1990, o cineasta afirmou que faria apenas 10 longas-metragens e se aposentaria. No que sempre os jornalistas replicam: “Mas o senhor não vai fazer mais nada?” E ele: “Sim, vou fazer. Pretendo escrever romances ou até roteiros para outros diretores, porém o tesão de filmar para o cinema diminui cada vez mais”. Tarantino é um cinéfilo, sobretudo nostálgico, de uma era dourada que não existe mais e nem vai existir. Ele é um amante da película, da experiência cinematográfica que modifica o espectador de uma forma que nenhuma outra arte é capaz. Por essa razão, ele tentou, em toda sua carreira, fazer de cada lançamento de filme um evento: algo que deve ser visto e apreciado dentro de uma sala escura, com formato correto, e resgatar o sentimento de outrora, quando a discussão sobre um filme ou um movimento cinematográfico transcendia um lugar de nicho e se transformava numa religião com devotos e detratores. Que seja, o “fale mal, mas fale de mim”. O silêncio e a indiferença são a morte e a prisão de um artista como ele, inquieto, apaixonado e apaixonante.

Por intermédio de sua filmografia, para além de temas e obsessões que percorrem os longas, Quentin foi escrevendo um capítulo dedicado a cada gênero e subgênero que formaram a sua experiência como cinéfilo e o transformaram em cineasta, como no caso de Martin Scorsese. Assistir à obra completa de Tarantino é também passear pela História do cinema: gângsteres e marginais (Cães de aluguel e Pulp Fiction); traficantes e mafiosos (Amor à queima-roupa); psicopatas (Assassinos por natureza); vampiros (Um drink no inferno); blaxploitation (Jackie Brown); samurai (Kill Bill); grindhouse e exploitation (À prova de morte); guerra (Bastardos inglórios); faroeste (Django livre e Os oito odiados); e metalinguagem sobre cinema (Era uma vez em... Hollywood).

À prova de morte partiu de uma ideia do cineasta e amigo Robert Rodriguez – que dirigiu a primeira parte do projeto com o título Planeta terror – de realizar uma homenagem à era dos programas duplos e triplos de filmes B, produtos com baixo orçamento, de gênero, com ingressos baratos para atrair um público ávido por entretenimento, mas sem condições para pagar caro. Os longas passavam em cinemas de rua e drive-ins, com grande apelo comercial, e serviram de escola para lançar um grande número de cineastas. Ou seja, era a oportunidade ideal para Tarantino revisitar os exploitations que marcaram sua formação. Death Proof, título original, nada mais é do que a junção de três subgêneros: slasher, perseguição de carro e vingança. Só que trazendo em cada frame a marca indelével do realizador.

O primeiro plano do filme já está recheado de obsessões do diretor: carro, pés de mulheres e surf music. Os créditos são estilizados e, diferente da maioria das produções dos anos 2000, À prova de morte foi rodado em película e as manchas e falhas presentes na imagem na primeira parte da narrativa não foram geradas de maneira eletrônica, mas sim diretamente através da deterioração da película. Há falhas propositais no desenho de som, bem como jump cuts (cortes dentro do plano), milimetricamente compostos para transmitirem o desgaste da cópia com a passagem do tempo. A paleta de cores e a ambientação remetem aos grindhouses dos anos 1970, ainda que o filme seja ambientado no tempo presente. Essa construção é tão bem definida que soa completamente estranho e anacrônico quando a personagem Jungle Julia manda mensagens ao namorado através do celular. O aparelho é uma peça que não se encaixa em meio ao jukebox, às cores quentes e às roupas antigas.

Como em grande parte da filmografia do diretor, o protagonismo recai para personagens femininas fortes e marcantes. Nesse sentido, Death Proof é a prova cabal desse olhar particular para as mulheres: o trio inicial de moças está completamente no controle com relação aos homens. Elas intimidam, castram e neutralizam todos os personagens masculinos. Em especial nas sequências do bar. Ainda que Arlene conceda uma dança sensual ao dublê, ela só o faz porque deseja estar no controle. E é exatamente o que a “lap dance” significa: a mulher está no controle da ação e o homem só pode admirar e desejar, sem ser parte dominante na ação.

O dublê Mike é a representação perfeita de um desencantamento com o cinema da contemporaneidade, sentimento supracitado pelo próprio Tarantino. Ele fazia cenas de risco para astros do passado, em uma época na qual os efeitos especiais eram usados de maneira moderada e a ação transcorria em tempo real, sem um trabalho custoso de pós-produção. Todas as cenas de ação vistas em À prova de morte foram feitas por dublês, o que traz um frescor único para as tomadas. As menções a Vanishing Point, Gone in 60 Seconds e Cannonball Run não são apenas piscadelas para uma audiência que cresceu vendo sequências espetaculares de perseguição de carro, mas sim uma forma de revisitar explicitamente e até superar uma era do cinema comercial americano.

“Aqueles dias se foram...”, Mike parece dizer a cada sequência em que está presente: desde suas roupas até seus modos. Ele busca uma excitação de tempos idos e a única forma de saciar seu desejo físico e sexual está em perseguir jovens mulheres e levar terror às estradas. Nessa descrição de personagem, mais uma vez, o homem encontra-se castrado e impotente, somente se sentindo masculino dentro do carro (com direito a leitmotiv de vilão) em perseguição a mulheres. “Você tem medo de mim? É por causa de minha cicatriz?”, indaga Mike a Arlene. E é nesse caminho destrutivo que o personagem só vai encontrar saída no momento em que encontra rivais à altura: dublês femininas especialistas em carros. Porque, para a revisão de gênero à la Tarantino, o passado sempre se choca com o novo.

À prova de morte traduz de maneira cinemática o universo de Tarantino: música, verborragia e corpos. Estes três elementos motrizes guiam a montagem como um fluxo rítmico entre a intimidade compartilhada de amigas em um plano-sequência de sete minutos e a captura do olhar para cada detalhe do quadro. É um cinema revisionista, repleto de referências, que urge por revisões, como os grandes clássicos de uma era que não existe mais...



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