Críticas


DOSSIÊ TARANTINO: DJANGO LIVRE (2012)

15.08.2019
Por Vinicius Spanghero
O atualíssimo Velho Oeste de Django Livre

Quentin Tarantino adentrou o milênio no espírito de homenagear diversos gêneros cinematográficos, deixando sua marca registrada em cada um deles. Como se, após receber aclamação mundial por suas obras calcadas na sujeira do crime e dos gângsteres contemporâneos, o cineasta do Tennessee desejasse brincar com seus brinquedos favoritos, que até então mantinha guardados em uma caixa de peculiar cinefilia. Foi das artes marciais em Kill Bill para o filme de guerra em Bastardos inglórios, passando pelo filme B experimental À prova de morte, no qual a autoconsciência metalinguística já presente em quase todos os seus filmes foi elevada à enésima potência. Em Django livre (Django Unchained), seu sétimo filme, o alvo é o faroeste italiano, aqui transplantado e ressignificado para a sociedade escravocrata do sul estadunidense pré-Guerra Civil (no que o diretor batizou como o primeiro “southern”, um trocadilho com o termo em inglês “western”).

Django (Jamie Foxx) é um escravo liberto que se torna caçador de recompensas ao lado do alemão King Schultz (Christoph Waltz). Após capturarem diversos fora da lei, a improvável dupla embarca na missão de resgatar a esposa de Django, Hildi (Kerry Washington), que foi comprada pelo sádico fazendeiro Calvin Candie (Leonardo DiCaprio). Segundo Tarantino, a origem da ideia se deu quando ele escrevia um livro sobre Sergio Corbucci, o diretor do clássico spaghetti western Django, de 1966: “Estava escrevendo sobre como seus filmes têm esse Velho Oeste maldoso, um Velho Oeste horrível. Era surreal, lidava muito com o fascismo”.

Ao reproduzir essa fórmula no contexto histórico dos Estados Unidos, Django livre acaba se tornando um comentário sobre a violência racial presente tanto no século XIX quanto na América de Donald Trump. Apesar de o filme anteceder o mandato do atual presidente norte-americano, é difícil não associar sua mensagem de reivindicação histórica ao atual recrudescimento dos discursos de ódio na maior potência econômica do planeta e, infelizmente, no mundo todo. De sua maneira tipicamente irônica e excessiva – alguns diriam até irresponsável –, Tarantino se propõe a discutir o horror da escravidão e a maneira como seu país natal encara essa dolorosa parte de sua história.

Passando por cima da discussão tipicamente pós-moderna sobre lugar de fala, seu discurso político é a própria mise-en-scène. Tarantino sempre foi um cineasta associado a polêmicas sobre a estetização da violência presente em suas obras. Embora inegável, é interessante notar como essa estetização se dá de maneira hierárquica. Em seus filmes, e particularmente em Django livre, a violência contra os opressores é cartunesca e catártica; a que é sofrida pelos oprimidos é brutal e sóbria. Quando a representação da violência se torna discurso, existem diferenças semânticas.

Como representante de um gênero, o filme é extremamente bem-sucedido em evocar os clássicos do spaghetti western, como o próprio Django de Corbucci e as obras de Sergio Leone, Giulio Petroni e Franco Rossetti, acrescentando uma pitada de “blaxploitation”, movimento setentista que deu grande visibilidade para personagens negros em tramas de ação. As paisagens naturais magnânimas de Wyoming e Louisiana são muito valorizadas pela profundidade de campo da fotografia de Robert Richardson, cinematógrafo que trabalhou em todos os filmes de Tarantino desde Kill Bill (com exceção de À prova de morte). Sua típica iluminação dura e estourada, ao realçar cada grão de poeira, confere aos cenários sulistas uma tactilidade que ajuda a aproximar o século XIX dos tempos atuais, impressão corroborada pela presença anacrônica de canções originais de hip hop e R&B.

Não faltaram críticos, à época do lançamento, condenando o uso pelas personagens do filme de uma palavra hoje considerada extremamente ofensiva para se referir aos negros. Apesar de historicamente precisa, sua presença extensa (ela é dita mais de 100 vezes nas quase três horas da obra) foi questionada quando colocada ao lado de elementos não históricos, como as rinhas de escravos conhecidas como mandingos, sobre as quais não existem registros de que realmente existiram. Se Tarantino se mostra disposto a reescrever a História desde quando metralhou Hitler dentro de uma sala de cinema ao final de Bastardos inglórios, em Django livre ele o faz de maneira igualmente balística, mas também carregado de certo simbolismo. Django não abole a escravidão ao explodir a casa grande de Candyland, a fazenda de algodão onde se passam os dois terços finais da obra, como Shoshanna e os Bastardos puseram fim ao regime nazista. Da maneira como Stephen (Samuel L. Jackson) coloca em seus momentos finais, essa não é uma tarefa tão simples. “Sempre haverá uma Candyland”, ou seja, um sistema racista a ser pulverizado.

Vinícius Spanghero é graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense. Seu primeiro curta-metragem como roteirista e diretor será finalizado em 2019.



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