Críticas


DIAS SELVAGENS

De: WONG KAR-WAI
Com: LESLIE CHEUNG, MAGGIE CHEUNG, CARINA LAU
15.01.2007
Por Marcelo Moutinho
KAR-WAI EM ESTADO BRUTO

O cinema de Wong Kar-Wai equilibra-se numa delicada tensão: ao tratamento refinadamente estetizado da forma contrapõe-se a dura e humaníssima imperfeição do conteúdo que desvela. Os planos que fogem dos clichês do enquadramento, o clima sessentista pontuando uma espécie de estação ideal da memória e a movimentação sinuosa da câmera que capta, mais do que a cena, sua atmosfera, flagram relações amorosas plenas de potência e que, no entanto, caminham sempre para o inevitável precipício.



Idéia-motriz de sua obra, o tema da impossibilidade do amor já está presente em Dias Selvagens, produção de 1991 e que, portanto, precede sucessos como Amores Expressos (1994), Felizes Juntos (1997) e o recente 2046 (2004). O filme inaugura a parceria de Kar Wai com seus dois atores-assinatura - Leslie Cheung e Maggie Cheung - e centra-se na figura de Yuddi, enteado de uma prostituta de luxo cujo sonho é conhecer a mãe natural.



O conquistador Yuddi atrai a paixão de duas mulheres, Su e Mimi, a quem trata com desprezo. Sua vaidade - sublinhada no recorrente ato de pentear os cabelos em frente ao espelho - e o aparente egoísmo são destilados em diálogos que se tornam ainda mais lânguidos pelo calor que o cenário sugere na presença constante de ventiladores.



É através do cenário, aliás, que o diretor sublinha a ambiência de Dias selvagens: a recorrência dos relógios e as paredes que descascam indicam a força opressiva da passagem do tempo; as cortinas, a chuva e a fumaça dos cigarros turvam a imagem, criando camadas outras antes da mera "realidade" que a cena parece retratar. Do mesmo modo, o filme antecipa elementos que se tornariam marcas do diretor, como as elipses, os planos-seqüência e a trilha sonora nostálgica que encontra no bolero o ritmo ideal para suas obsessões.



Todos esses elementos, contudo, aparecem ainda em estado bruto, redundando por vezes em maneirismos que, com o decorrer dos anos, Kar-Wai felizmente refinou. Essa crueza, se não chega a atrapalhar a fruição do filme, responde por seu único senão: a tentativa de justificar a incapacidade de estabilidade afetiva de Yuddi a partir da carência primordial da falta do colo materno.



Também neste caso, mais acaba sendo menos. Pois a impossibilidade do efetivo encontro amoroso e seu conseqüente desejo, como sinalizaria o próprio diretor em trabalhos posteriores, não se presta a conexões tão prosaicas. Em suma, é uma conta que nunca fecha.

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário