(Texto publicado originalmente no DocBlog do autor)
O movimento de moradia retratado em À Margem do Concreto é um fenômeno social tipicamente paulista com know how importado da Argentina. Como já vimos no documentário Dia de Festa, de Toni Venturi, é razoavelmente organizado, tem lideranças sólidas e conquistas importantes. A ocupação do prédio nº 911 da Av. Prestes Maia, iniciada em 2002, é tida como a maior ocupação vertical da América Latina. Na semana do carnaval, as 1.630 pessoas que residem nos 22 andares do edifício estiveram mais uma vez ameaçadas de expulsão. As camadas progressitas da cidade se mobilizaram em sua defesa e a reintegração do imóvel foi adiada por 60 dias. Mas o impasse continua.
O filme de Evaldo Mocarzel é o segundo tomo de sua tetralogia sobre a vida à margem da opulência paulistana. Em À Margem da Imagem, ele abordou os moradores de rua. Em À Margem do Concreto, recolhe as razões e focaliza as práticas do movimento de moradia, que se vale de uma garantia constitucional negada pelo sistema da propriedade privada. O conjunto vai se completar com À Margem do Lixo, sobre catadores de materiais recicláveis, e À Margem do Consumo, sobre os desejos dos moradores de uma favela da periferia de São Paulo.
Em À Margem do Concreto, quando ouve os líderes das ocupações, Mocarzel se interessa por suas histórias pessoais, conferindo-lhes uma dimensão humana que faz deles algo mais que "vozes" do movimento. Surpreende que histórias de violência familiar estejam na origem de tantas trajetórias. Sem os refrescos de humor e o fairplay marginal de À Margem da Imagem, este é mais duro de ver, mais feio e triste. Um filme tão "difícil" quanto denso e oportuno. Os dois últimos adjetivos podem explicar os prêmios de melhor filme do júri popular no Festival de Brasília e de melhor documentário do Festival do Rio do ano passado.
Mocarzel não santifica ninguém, nem escamoteia a diversidade de métodos e ideologias que convivem no movimento. Estimulados por suas perguntas, aparecem tanto a objetividade pragmática de Verônica Kroll, líder do Fórum dos Cortiços, como o discurso dogmático e quase folclórico de Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, veterano militante do Movimento de Moradia do Centro (MMC).
Mais do que nunca, percebe-se que os documentários de Mocarzel não se contentam em “ouvir”, mas tendem a “provocar”. Suas entrevistas propõem questões e dilemas às pessoas. O preço disso é incentivar a ênfase em certos estereótipos culposos, como as acusações à classe média (ou “classe merda”), eterno saco de pancadas do doc social pseudo-popular. Mas quando o método funciona bem, temos grandes momentos – como os comentários dos ocupantes sobre a cobertura do movimento pela mídia, que geralmente os classifica como “invasores ilegais”. Aqui o diretor soma pontos a seu projeto autoral de colocar a imagem do povo em discussão não por intelectuais, mas pelo próprio povo.
A câmera operada pelo tarimbado Jorge Bodanzky capta situações altamente reveladoras, como a reunião para debater a conduta de um casal belicoso que havia chamado a polícia, assim infringindo uma regra básica da cartilha de ocupações. O filme conclui com uma seqüência de antologia. A tomada de um prédio no Centro de São Paulo é registrada de fora e de dentro, num registro visceral. Para reconstituir a dinâmica e o fragor do evento, o montador Marcelo Moraes fez um belíssimo trabalho de articulação das imagens filmadas por três câmeras, sendo que uma entrou no edifício com os ocupantes.
Não é feliz o desfecho desse episódio próximo da guerrilha urbana. Mocarzel optou pelo anticlímax “para que as pessoas saíssem da sala de cinema com essa indignação, para que não purgassem em lágrimas a energia do inconformismo diante daquela dramática situação". Isso só reafirma À Margem do Concreto como um filme realista e incômodo, sem margem de redenção.
À MARGEM DO CONCRETO
Brasil, 2006
Direção: EVALDO MOCARZEL
Produção: ZITA CARVALHOSA
Roteiro de edição: EVALDO MOCARZEL, MARCELO MORAES
Fotografia: JORGE BODANZKY
Montagem: MARCELO MORAES
Duração: 85 minutos