Críticas


DOSSIÊ WOODY ALLEN: MANHATTAN (1979)

25.01.2020
Por Marcelo Janot
A maior de suas obras-primas, o filme-síntese de uma obra genial.

Após o inesperado e estrondoso sucesso de “Annie Hall”, que ganhou 4 Oscars, entre eles os de melhor filme, direção e roteiro, Woody Allen quebrou todas as expectativas com o pesado drama “Interiores”, em que pôde dar vazão ao seu desejo de fazer um filme “sério”, quase um tributo a um de seus maiores ídolos, o cineasta sueco Ingmar Bergman. A repercussão foi a mais negativa possível tanto entre os críticos como entre os fãs, que esperavam que Allen os fizesse rir. O próprio diretor declarou posteriormente que se pudesse reescrever “Interiores” o filme teria um pouco de humor para amenizar o drama.

Mas não foi preciso muito mais tempo para que ele se reconciliasse com os admiradores de seu trabalho. Logo no ano seguinte, em 1979, seria lançada aquela que talvez seja a maior de suas obras-primas, o filme-síntese de uma obra genial: “Manhattan”.

A abertura já é por si só desconcertante: a narração em off de um escritor refletindo sobre diferentes formas de começar um livro em que declara seu amor por Nova York, ilustrada por imagens em preto e branco da cidade pulsando com o movimento nas ruas, os letreiros iluminados, culminando com fogos de artifício por detrás dos arranha-céus, tendo ao fundo (ou à frente, dependendo da perspectiva) os acordes de “Rhapsody in Blue”, composição escrita por George Gershwin em 1924.

O que se verá a seguir é um compêndio de várias das marcas registradas que Allen desenvolveu em mais de cinco décadas de carreira: cirandas amorosas protagonizadas por um intelectual neurótico, verborrágico, hipocondríaco, nostálgico, tendo ao fundo uma visão idealizada de sua cidade preferida, sobretudo a região que dá nome ao título: Manhattan.

Por vezes temos a impressão de que os filmes de Woody Allen se bastam pelo talento do diretor-roteirista-ator, mas em “Manhattan” há de se louvar o papel fundamental de dois profissionais da equipe técnica. Uma é a montadora Susan E. Morse, com quem ele trabalhou por 20 anos seguidos a partir deste filme, que garante o fluxo poético da narrativa, intercalando o ritmo frenético dos diálogos com pausas que permitem a devida acolhida à combinação da música com as imagens da cidade.

O outro é o responsável por essas imagens: Gordon Willis, o lendário diretor de fotografia conhecido como Príncipe das Trevas por conseguir, como poucos, trabalhar os efeitos das sombras. É dele a fotografia da trilogia “O Poderoso Chefão”, “Annie Hall”, “Zelig”, “A Rosa Púrpura do Cairo”. Teve apenas duas indicações ao Oscar ao longo da carreira, e em 2010 lhe deram de consolo um Oscar honorário.

Azar do Oscar que não soube reconhecer na ocasião o que ele fez em “Manhattan”. A cena em que Isaac (Allen) e Mary (Diane Keaton) conversam tendo ao fundo a Queensboro Bridge se tornou uma das imagens mais marcantes da história do cinema, fruto do trabalho de um diretor de fotografia extremamente rigoroso na composição de cada plano, e que em “Manhattan” oferece outros momentos sublimes, como a sequência do Planetário. Foi ele quem convenceu Allen da importância de utilizar, neste filme, o formato widescreen.

Perto do fim, Isaac se arrepende de tê-la abandonado e resolve ir atrás de Tracy (Mariel Hemingway), sua ex-namorada quase adolescente, quando ela está prestes a embarcar para um período de estudos na Europa. Pede que mude de ideia e fique, mas ela responde que seis meses passam rápido e eles poderão se reencontrar no futuro. Ante a reação de desânimo dele, ela retruca: “você precisa ter um pouco de fé nas pessoas”. Com a música de Gershwin tocando ao fundo, ele esboça um leve sorriso e o filme termina.

Termina? Até hoje as leituras desta cena são as mais variadas possíveis. Há quem garanta que ele finalmente se tocou de que a ama e estaria disposto a lutar por esse amor. Mas a combinação da frase “você precisa ter um pouco de fé nas pessoas” com o sorriso enigmático dão margem à interpretação que, para mim, é a mais coerente com a obra de Allen. Se tiver fé nas pessoas, Isaac deixa de ser um típico personagem de Woody Allen. Se tivessem reatado, a paixão desapareceria tão logo uma outra Mary cruzasse seu caminho. Portanto, o melhor que Isaac tem a fazer é oferecer o sorriso de quem sabe que o seu mundo é aquele que nos habituamos a reconhecer em cinco décadas de carreira.

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Outros comentários
    5105
  • Clidevar
    10.05.2020 às 02:19

    Caro Janot, Como você, sempre me afiliei à pessimista corrente minoritária que enxerga o sorriso final de Allen quebrando a 4a parede como um comentário ao público sobre a desolação de quem sabe que não poderá se emendar às esperanças próprias da juventude, ao mesmo tempo em que reconhece nelas o valor que lhe permitiria se libertar das amarras existenciais que cronicamente criou (ou revelou?) para si. Vale lembrar também que a bela cena guarda muito de sua delicadeza no pot-pourri orquestral de "But not for me", "Someone to watch over me", com os acordes finais de "Rhapsody in blue". Sempre achei interessante, por fim, como nos clássicos de WA, a aura da a-temporalidade, ou o que Bakhtin chamou de cronotopo, façam desaparecer traços de maneirismos e anacronismos, os mesmos presentes em obras recentes menos inspiradas dele que, nestas sim evidenciados, as tornam completamente fora de atualidade. Talvez seja por esse mistério que se possam chamar filmes como "Manhattan" de clássicos. Abraço.
    • 5106
    • Marcelo Janot
      10.05.2020 às 21:40

      Clidevar, muito boas e pertinentes as suas observações. De fato é um filme que não envelhece. Obrigado pelo comentário. Um abraço.