O caráter espetacular das imagens e a intimidade de acesso da câmera faz com que o espectador de Gangues de Cité Soleil se sinta diante de um filme de ficção. É Cidade de Deus no Haiti de verdade, acrescido de uma dimensão política. Em 2003 e 2004, quando o holandês Asger Leth rodou o filme, o governo do ex-padre Jean-Bertrand Aristide estava acuado pela oposição e havia instrumentalizado as gangs da enorme favela de Cité Soleil, em Porto Príncipe, para atacar seus adversários.
O fato de ser filho de Jorgen Leth, veterano documentarista e ex-cônsul holandês no Haiti, certamente ajudou o diretor a conseguir essa notável penetração em um dos lugares mais perigosos do mundo (segundo a ONU). Ele colou nos irmãos Bily e 2Pac, dois chefões da gang dos Chimères (fantasmas). Bily e 2 Pac desfilavam pela cidade exibindo seus fuzis, distribuindo dinheiro e arrotando poder, guarnecidos por 3.000 “soldados” armados. Enquanto isso, uma trama shakespeareana se desenhava entre eles por causa de divergências grupais e das atenções amorosas de Lele, uma assistente social francesa.
A impressão de que tudo não passa de uma refinada encenação gangsta rap só se desfaz quando a chapa esquenta e a bala come solta na frente da câmera. Há mesmo um momento em que o cinegrafista é virtualmente ameaçado de morte. Nesse sentido, o doc nos faz experimentar o frio na barriga das explosões de violência, dos impasses e das tensas negociações de rendição quando Aristide foi substituído por rebeldes oposicionistas em fevereiro de 2004.
O filme é às vezes confuso nas escaramuças das gangues, quase sempre superficial como exposição da política e fica a um passo de romantizar a figura do bandido. Descontado tudo isso, ainda resta um exemplo admirável de documentário de risco – concreto, visceral e inquietante como uma rápida incursão ao inferno.
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GANGUES DE CITÉ SOLEIL (GHOSTS OF CITÉ SOLEIL)
Dinamarca, 2006
Direção e roteiro: ASGER LETH
Duração: 86 minutos
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