Críticas


FESTIVAL DO RIO 2007: JOGO DE CENA

De: EDUARDO COUTINHO
Com: MARÍLIA PERA, FERNANDA TORRES e outras
03.10.2007
Por Carlos Alberto Mattos
ACREDITE SE QUISER

Sem deixar de ter a marca do realizador – um filme de falas, com gente reunida por um critério casual -, Jogo de Cena amplia o espectro do trabalho de Coutinho. Em seu essencialismo, O Fim e o Princípio o havia levado a um entroncamento perigoso: para onde avançar no modelo mais ou menos homogêneo que desenvolveu desde Santo Forte? Era hora de mudar – e Coutinho mudou para ser ainda mais ele mesmo.



A novidade não está somente em receber todas as personagens num mesmo palco de teatro vazio, em vez de ir até elas. Nem na presença de atrizes como Marília Pêra, Andréa Beltrão e Fernanda Torres, além de outras menos conhecidas. O que Jogo de Cena acrescenta é a radicalização de um princípio já presente em Santo Forte, Babilônia 2000, Edifício Master e O Fim e o Princípio. Em todos esses filmes, Coutinho estava em busca da auto-encenação do outro. Mostrava como as pessoas gostavam de se apresentar, como transformavam a si mesmas numa espécie de personagem – conduta natural diante de uma câmera e de um homem que faz perguntas.



Assim como não podemos dissociar o que seja verdade da fabulação no depoimento de uma pessoa qualquer (até porque ambas constituem a sua “verdade”), em Jogo de Cena somos convidados a transformar isso num jogo mais complexo. Atrizes e personagens reais se confundem em vários níveis, jogando com o que sabemos, ignoramos ou apenas esperamos de cada uma.



O filme abre com um anúncio de jornal publicado no Rio. Mulheres com histórias para contar eram convidadas para um teste cinematográfico. “Vagas limitadas”, enfatizava-se. Das 83 mulheres que se dispuseram a falar de sua vida num estúdio, Coutinho selecionou 23, que foram filmadas no palco do Teatro Glauce Rocha. No filme estão algumas delas, alternadas com as atrizes que receberam os textos e os DVDs de seus depoimentos para as reinterpretarem como quisessem. Com esse dispositivo, Coutinho desloca o tema do conteúdo dos relatos para os relatos em si.



As histórias são relativamente semelhantes. Tratam de separações, perdas, depressão, gestação, relações familiares difíceis, sonhos, projetos de vida, reconciliações. O básico coutiniano. Mas ao alternar, e às vezes embaralhar, depoimentos reais com reencenações, o diretor joga o espectador num exercício de dúvida quase permanente. Eventualmente, as atrizes também eram estimuladas a contar passagens de sua própria vida, contribuindo para a indiferenciação. As surpresas são freqüentes, a instabilidade é constante. A cada novo rosto ou nova cena, temos que reajustar nossa expectativa e nossa relação de “fé” no que ouvimos. O procedimento sublinha mais uma vez que a diferença entre doc e fic é mais uma questão de quem consome do que de quem produz. Documentário é aquilo em que decidimos “acreditar”.



Vez por outra, a edição de Jordana Berg nos franqueia momentos de reflexão ou hesitação das atrizes mais célebres. O filme, então, volta-se diretamente para os mecanismos da representação. Fernanda Torres, por exemplo, entra em crise quando falha o processo de “incorporação” naturalista de sua personagem. Marília Pêra, por sua vez, troca o mimetismo por uma adaptação da personagem ao seu estilo particular. Profissionalíssima, levou um bastão de cristal japonês para o caso de Coutinho exigir-lhe lágrimas abundantes. Desse ponto em diante, o fantasma do cristal japonês não deixa mais o espectador em paz.



O filme ajuda a desmistificar toda intenção de pureza e faz o elogio da atuação dramática. Mesmo quando ela nasce da mais profunda sinceridade.



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JOGO DE CENA

Brasil, 2007

Direção:
EDUARDO COUTINHO

Elenco: MARÍLIA PÊRA, FERNANDA TORRES e outras

Duração: 103 minutos

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