A inteligência em fazer um documentário nem sempre está na busca sôfrega da informação ou na tentativa de deixar tudo às claras para o espectador. Isso é coisa de jornalismo. O documentário trabalha em extensões mais amplas e em camadas mais profundas. Às vezes não basta estar no lugar certo. É preciso esperar o tempo certo para a realidade aflorar diante da câmera em toda a sua complexidade.
Em O Tempo e o Lugar, Eduardo Escorel dá uma aula de documentário longe das salas de aula. A própria história de sua relação com Genivaldo Vieira da Silva explica esse processo exemplar.
Escorel descobriu o personagem ao fazer um minúsculo perfil para a série de interprogramas de TV Gente que Faz, em 1996. Percebeu logo que havia ali uma história bem maior e mais interessante que a cabível no anúncio do agricultor de sucesso. Pediu, então, que Genivaldo contasse um pouco de sua vida diante de um gravador de áudio. Nove anos depois, voltou a Inhapi (Alagoas) para tomar o depoimento de “Geno” em vídeo. Pensava em escrever um roteiro de ficção, idéia abandonada em troca de um doc de longa metragem. Em 2007, finalmente, retornou a Alagoas para filmá-lo em atividade e cercado por família e colaboradores.
Esses diferentes materiais se articulam no filme segundo um mecanismo semelhante ao da memória: associações, reflexões, desdobramentos. A história de Geno vai sendo desfolhada, sua personalidade vai se desenhando com pinceladas dele próprio, dos filhos, dos amigos – e, principalmente, de uma câmera que recolhe sinais do que não chega a ser dito.
A história de Genivaldo é suculenta como uma panelada do sertão. Descendente de coiteiros de Lampião, cresceu sob as abóbadas da Igreja católica, rezando e tocando obras. A Pastoral da Terra o conduziu ao Sindicato de Trabalhadores Rurais e ao MST, época em que diz ter treinado guerrilha e virou líder de ocupações em Alagoas. Ele relata essa fase de ativismo radical com um curioso misto de verve e distanciamento crítico, que o torna um personagem extremamente interessante. Conta também como seu espírito independente acarretou sua expulsão do movimento e, mais tarde, um sentimento de desconfiança em relação a toda política partidária – inclusive o governo Lula, que apoiou inicialmente.
Hoje dirigente de uma central de pequenos agricultores de seu estado, cabelo pintado que mal disfarça uma vaidade doce, Geno continua o animal político de sempre. No entanto, vai ficando cada vez mais distante das pelejas do passado e mais próximo de um almejado descanso como criador de bodes.
Mesmo depois de ler esse resumo dos dois parágrafos acima, você não conhece nem um milésimo do que perceberá no filme. O que se constrói, por exemplo, na interação de conversas de Escorel com os filhos de Geno, dois deles candidatos a vereador, é a radiografia de uma forma muito peculiar de se fazer política na atualidade nordestina. Uma disputa entre laços de família e laços de partido marca o cotidiano do grupo e da cidade, assim como a interação entre novas formas de organização popular e antigas leis de clãs. Nesse sentido, O Tempo e o Lugar funciona também como um prosseguimento da investigação iniciada pelo diretor, junto com José Joffily, em Vocação do Poder.
Mas é também o diretor de Chico Antonio – O Herói com Caráter e o montador de Cabra Marcado para Morrer e Santiago quem “aparece” por trás dessa estrutura de “movimentos circulares” (como bem caracterizou Felipe Messina). O lugar fixo e um tempo que desliza diante de nós. Um personagem que até na maneira de falar e de gesticular lembra Lula. Uma espécie de Lula que se plantou no mesmo lugar e construiu apenas o seu próprio tempo, em vez do tempo do país inteiro.
De alguma maneira, o jeito de ser de Escorel se assemelha ao de Genivaldo, e isso é produtivo para o filme. Com seu modo manso (às vezes manso demais, eu diria) de chegar e perguntar, Escorel chega mais perto que a maioria dos afobados por aí. Sabe dar tempo ao tempo. Em 2007, Geno é certamente um personagem muito melhor que em 1996. Dona Lia, por sua vez, parece a esposa mais solitária desse mundo, que a câmera retrata sobretudo pelo silêncio, os movimentos arredios, o recolhimento às coisas da casa. A distância entre Geno e Lia contrasta violentamente com o entusiasmo da união dele com Zilma, a companheira de lutas, revelando o típico homem que “se casou” com a política.
Em anotações sutis como essa, que valorizam mais a percepção do espectador que a volúpia do documentarista, Eduardo Escorel deixa sua marca de mestre.
Visite o DocBlog do crítico.
O TEMPO E O LUGAR
Brasil, 2008
Direção: EDUARDO ESCOREL
Fotografiae câmera: RICARDO STEIN
Som direto: HERON ALENCAR
Edição: JORDANA BERG
Produção executiva: ALVARINA SOUZA SILVA
Duração: 18 minutos