A transposição de uma peça de teatro para o cinema já foi tão discutida pela crítica com o passar dos anos que se transformou até mesmo em clichê as qualidades e defeitos que a obra em questão deve possuir. À parte a eficácia do projeto, o que deveria estar sempre em foco é a essência cinematográfica do texto. Ou seja, se ele está apto para uma adaptação às telas sem meramente soar como uma tentativa de produtor em capitalizar em cima de uma produção teatral de êxito.
John Patrick Shanley é um profissional ligado à palavra e à dramaturgia no sentido mais restrito do termo. Apesar de receber um Oscar de roteiro original logo em sua segunda incursão cinematográfica (Feitiço da Lua, 1987), ele não trilha uma carreira auspiciosa dentro do cinema; é no teatro que ele se realiza e atinge o ápice, em 2004, com a consagração de sua peça Doubt, que foi vencedora do prêmio Pulitzer e do Tony. A sua encenação causou polêmica pelo tema espinhoso da pedofilia em um colégio católico americano. Uma adaptação dela foi realizada no Brasil pelo diretor Bruno Barreto, em 2006, com Dan Stulbach e Regina Braga nos papéis principais. E ao se avaliar a força dramática de sua estrutura percebe-se um interesse real em levar para o cinema um texto que privilegia o confronto de diálogos, mas também que abre espaço para ambiguidade em um caráter puramente imagético. O que faz com que Dúvida (2008) seja, a princípio, uma exceção aos projetos de teatros filmados. Porém, tudo depende da realização, e Shanley resolveu que ele seria o único capaz de fazer uma versão para o cinema de sua peça. Ainda que sua única experiência atrás das câmeras tenha sido na comédia Joe Contra o Vulcão (1990), com Tom Hanks no papel principal. E é, nesse momento, que se faz escolhas: em cinema, como na literatura ou teatro, a abertura de uma porta implica no fechamento de todas as outras. Shanley tem, sem dúvida, um bom texto em mãos, mas, ao mesmo tempo, não consegue enxergar que é o diretor errado para sua execução.
O eixo de Dúvida gira em torno de seu elenco, que deve ser bastante competente para sustentar a força dos diálogos e os inúmeros embates interpretativos. Nesse quesito, o filme não poderia apresentar melhores nomes para a composição de seus personagens atormentados: Philip Seymour Hoffman é um padre progressista e liberal para os padrões da década de 60 e que busca a reflexão em seus fiéis; já Meryl Streep, apesar de soar caricata no início, dá nuances a uma freira retrógrada que zela pela moral e os bons costumes; e a jovem Amy Adams permanece no meio do fogo cruzado entre a fé no homem e o respeito aos superiores. Todos carregam em seus semblantes as incertezas típicas de quem atravessa uma forte crise existencial e que ganha contornos dramáticos no decorrer da ação. É por intermédio do silêncio, do meneio de cabeça e de uma respiração ofegante que os atores transmitem mais sensações do que ao proferirem palavras. Entretanto, tudo aquilo que é construído pelo elenco é diminuído pelas saídas visuais do realizador, que se utiliza do expediente de metáforas frágeis para tentar agregar valor ao drama. Não há nada mais óbvio do que anunciar a presença da natureza e assim indicar ao espectador a turbulência pelas quais atravessam os personagens. E Shanley faz isso mais de uma vez ao insistir no vento e na chuva para anunciar mudança. Isso ainda é embalado pelo acompanhamento da trilha sonora. É como se o diretor precisasse interceder para demonstrar seu pulso e sua presença cênica, como na lâmpada que estoura em duas ocasiões drásticas e o telefone que insiste em tocar no momento de uma discussão. Além de ilustrar literalmente um sermão em forma de parábola.
O tema da pedofilia parece assim se diluir em meio a uma simples pendenga pessoal. Ao salientar a sua presença, o cineasta John Patrick destitui seu material da pujança do texto escrito. Dessa forma, chama somente a atenção para uma investigação interna a respeito do envolvimento entre um padre e um aluno enquanto que Dúvida versa mesmo sobre a identidade e a fé em cada ato ou pensamento de um indivíduo. Não numa tentativa de se espalhar pistas, como o plano em que o padre abraça carinhosamente o aluno, e procurar culpados.
# DÚVIDA (DOUBT)
EUA, 2008
Direção e Roteiro: JOHN PATRICK SHANLEY
Fotografia: ROGER DEAKINS
Montagem: DANE COLLIER e DYLAN TICHENOR
Elenco: MERYL STREEP, PHILIP SEYMOUR HOFFMAN, AMY ADAMS, VIOLA DAVIS.
Duração:104 minutos