Se você não tem idade suficiente para ter acompanhado a carreira de Wilson Simonal, só posso lamentar sua falta de sorte. Simonal não foi apenas um dos artistas mais carismáticos do Brasil. Ele ajudou a reinventar a maneira de cantar musica brasileira e de colocar brasilidade em suas performances. Teve a ousadia de recriar o que já era perfeito, como João Gilberto, e de estabelecer uma relação de cumplicidade com seu público, da qual não conheço qualquer paralelo - seja nos shows ao vivo, seja sob o filtro da televisão. Nesse meio que ele entendia profundamente, a criação do Mug, para ficar apenas em um exemplo, estava 20 anos à frente de seu tempo. A simbiose entre a câmera e o olho do cantor criava na verdade um terceiro elemento, que o cinema conhecia talvez desde Eisenstein, mas que era, e até hoje é estranho, à TV generalista.
É extraordinário que um filme como Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei tenha sido capaz de expressar tão bem tudo isso. E que, acertadamente, não tenha mirado na biografia de Simonal, mas nas singularidades da destruição de sua carreira.
Se o desempenho artístico de Simonal é único, a demolição planejada de sua trajetória é muito mais. Entre os muitos méritos do filme está o de tratar o episódio com isenção jornalística. Essa postura acentua o que aconteceu com o grande ídolo da musica popular brasileira - e revela, de maneira cautelosamente discreta, mas contundente, as duas censuras existentes na época no país: a dos militares, nos quartéis; e a cultural, mais sutil, mais capilar, espalhada por toda parte.
Sobre a primeira, muito se falou. A segunda ainda é tabu. Historicamente, ela jamais foi derrotada. Dar um mergulho, ainda que veloz, neste lamaçal, é um ato quase heróico do documentário de Manoel, Langer e Leal. O cantor de maior sucesso do país foi banido da vida artística em questão de semanas. Da noite para o dia, não pôde mais fazer shows, gravar discos, atuar em televisão. A partir de uma acusação aparentemente leviana, foi sumariamente julgado e executado. Era Simonal. Imagine o que terá acontecido com os que não eram.
As patrulhas ideológicas, termo que Cacá Diegues cunhou quase 30 anos depois, fazem parte da história brasileira, como muitos outros eventos bons e maus. Não se pode dizer que o golpe militar de direita tenha existido e o patrulhamento cultural de esquerda, não. Quase todos os depoimentos contidos no filme, de Nelson Motta a Chico Anysio, confirmam isso – e apontam para a necessidade de se explorar mais a fundo esse episódio da nossa história recente.
Chico lembra que não se conhece uma pessoa que tenha sido dedurada por Simonal. Mièle desafia alguém a citar um cantor melhor do que ele. O arquivo recolhido pela produção confirma isso. Tal arquivo possivelmente seria maior se os realizadores tivessem concedido mais alguns minutos ao filme. Meu prazer em assisti-lo teria sido ainda maior, mas isso é irrelevante.
O fato é que, seja pelo artista que foi Simonal, seja pelo que a demolição meteórica de sua carreira representou para o estudo da estrutura de poder na produção e difusão artística brasileira - um episódio do qual seus protagonistas e os estudiosos ainda evitam falar - Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei deveria no mínimo ter exibição obrigatória em todas as aulas sobre a história recente do Brasil.
SIMONAL – NINGUÉM SABE O DURO QUE DEI
Brasil, 2008
Direção: CLAUDIO MANOEL, MICAEL LANGER E CALVITO LEAL
Direção de arte:EDUARDO SOUZA E RODRIGO LIMA
Produção:MANFREDO G. BARRETO E RODRIGO LETIER
Fotografia:GUSTAVO HADBA
Montagem:PEDRO DURAN E KAREN AKERMAN
Trilha sonora original:BERNA CEPPAS
Duração:86 minutos
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