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O PEIXE ABERTO NA MESA

14.08.2009
Por Carlos Alberto Mattos
O PEIXE ABERTO NA MESA

Não é mera coincidência que tenham chegado aos cinemas numa mesma semana Moscou, de Eduardo Coutinho, e Um Romance de Geração, de David França Mendes. Ambos trazem à lembrança a experiência de Louis Malle e David Mamet em Tio Vânia em Nova York. Não por simples acaso, há pouco mais de um ano foram lançados os revolucionários Jogo de Cena, de Coutinho, Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, e o equivocado mas não desprezível Mulheres Sexo Verdades Mentiras, de Euclydes Marinho. Todos eles comprometidos, cada um a sua maneira, com o lusco-fusco entre realidade e encenação.



Esse talvez seja o grande tema do cinema brasileiro de uns tempos para cá, sucedendo ao tema da violência urbana. Se incluirmos nessa lista os menos recentes Saneamento Básico, de Jorge Furtado, Como Fazer um Filme de Amor, de José Roberto Torero, e Santiago, de João Moreira Salles, vamos detectando uma clara disposição para ver o cinema por dentro. Não apenas o cinema, mas a própria ideia de espetáculo.



Um Romance de Geração talvez seja o mais explícito desse desejo de construir através da desconstrução – ou pelo menos embaralhar os conceitos, antes opostos, de construção e desconstrução. No filme de França Mendes, um diretor discute com os atores e o autor do livro a adaptação que está fazendo. Alternadamente, vemos a história de uma entrevista degringolada em álcool e divagações, e sucessivas rodadas de investigação documental sobre a escrita literária e os métodos de trabalho cinematográfico. Além, é claro, de um debate sobre as próprias questões colocadas nas duas obras: os projetos estéticos dos anos 1970 e os de hoje.



Parece muita coisa, e é. O filme assume esse risco com coragem autoral e modéstia técnica. Bem-sucedido ou não, ganha interesse por colocar em negrito uma tendência. A metalinguagem não é mais o jogo de espelhos pós-moderno dos anos 80, nem o mero dispositivo de comédia dos filmes de Furtado e Torero. A reflexividade aqui é um front aberto de discussão. A obra vira um peixe aberto na mesa da cozinha. Ficção e discussão se contaminam.



Jogo de Cena fazia algo semelhante sem enunciar. Ao confundir real e encenação, retirava o conforto da distinção e mostrava que tudo era relato. Moscou também procura avizinhar-se do mistério da representação e das motivações muito reais que estão por trás dela. Construir e desconstruir se equivalem, pois a obra está com as entranhas à mostra. O filme de David França Mendes é um sintoma e ao mesmo tempo uma bula para compreendermos o momento.

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