Críticas


ENTRE A LUZ E A SOMBRA

De: LUCIANA BURLAMAQUI
05.12.2009
Por Carlos Alberto Mattos
UM FILME COM FOME DE REALIDADE

Está em cartaz um dos melhores filmes brasileiros do ano. Tem amigos que se reencontram na prisão, tem amor entre classes sociais distintas, tem separações, tem rap, sucesso e celebridades. Tem o céu e o inferno correndo nas veias de um incrível documentário.



Entre a Luz e a Sombra é produto da competência e da perseverança de uma jovem realizadora que aprendeu (com Jon Alpert) a filmar a realidade sozinha. Fazendo ela mesma imagem e áudio, a mineira Luciana Burlamaqui começou a gravar, em 2000, os encontros dos rappers presidiários Dexter e Afro X e da atriz Sophia Bisilliat com jovens da Febem em São Paulo. Dexter e Afro X, amigos de infância na periferia de São Bernardo do Campo, formavam então o bem-sucedido grupo 509-E (número da cela que o destino os fez dividir no Carandiru). Dexter tinha um romance com Sophia, que desde os anos 1980 realizava trabalhos de humanização da vida carcerária através da arte.



Luciana, já uma experiente repórter de TV, mas insatisfeita com a prática de documentar situações sem aprofundamento, viu ali os ingredientes de um bom doc de processo, desses que capturam o desenvolvimento de um assunto no tempo. Nesses casos, é impossível definir se é o cineasta que se apega ao tema e aos personagens, ou se são estes que se impõem como algo a acompanhar. Não importa. Luciana seguiu gravando o cotidiano dos três ao longo de sete meses. Depois, fez atualizações pontuais durante sete anos. O que ela nos entrega agora é um espantoso testemunho da crise social brasileira, junto com uma complexa reflexão sobre a consciência da classe média diante do mundo do crime.



É curioso que Luciana não tenha feito muitas perguntas aos personagens de Entre a Luz e a Sombra. Preferiu o método da observação, colhendo cenas do dia-a-dia e de shows, desabafos e momentos de grande intimidade. As perguntas mais cruciais são feitas silenciosamente ao espectador que convive com Sophia, Marcos/Dexter, Christian/Afro X e o juiz Octávio de Barros Filho.



Eu, por exemplo, me senti indagado sobre várias coisas:



- Por que uma atriz promissora como Sophia Bisilliat decide largar a carreira para, com o apoio da mãe, a célebre fotógrafa Maureen Bisilliat, dedicar-se a caçar e ajudar talentos no presídio do Carandiru?



- Qual o limite entre a solidariedade e a fascinação, a partir do momento em que Sophia se encanta pelo rapper-presidiário Marcos/Dexter e se torna, mais que agente, sua companheira?



- O que existe de pessoal (íntimo) na atitude social dos que se empenham na regeneração de criminosos?



- Até que ponto os rumos do romance Dexter-Sophia influenciaram a posterior revisão que ela fez dos seus conceitos sobre a regeneração?



- Qual o lugar em nosso sistema penal para um juiz como Octávio, que precisa infringir a lei para não alimentar o círculo vicioso da violência, a grande sombra devoradora de que fala o título do filme?



- Que razões, além do nefasto determinismo social, levaram Dexter e seu parceiro Christian/Afro X a se distanciarem em matéria de comportamento e ideologia?



- Como distinguir as mensagens de paz e as declarações de guerra no rap furioso do 509-E? E como a mídia deve se comportar em relação a essa ambiguidade?



Enfim, são muitas e complexas as questões colocadas por este doc profundamente inquisidor. E o melhor é que não existe nenhuma retórica na forma como isso chega até nós. O grande trunfo de Luciana Burlamaqui é trazer essas questões no bojo mesmo da experiência que acompanhou com sua câmera solitária ao longo de sete anos.



Seguindo o percurso vivencial e emocional dos personagens, Entre a Luz e a Sombra faz a crônica de uma série de eventos públicos e privados no período entre 2000 e 2007. Presencia as saídas da dupla para os shows, gravações e premiações. Testemunha o surgimento do PCC e o dia do Salve Geral. Narra com distanciamento o massacre do Carandiru. Cobre os impasses na consciência dos personagens envolvidos com a ação solidária aos detidos. Chega às mais recentes atividades de Sophia e Maureen Bisilliat em seu “território híbrido”, uma zona cinzenta entre a sombra e a luz.



Não me recordo de nenhum filme – fic ou doc – que exponha a atual crise social brasileira com tanta potência e visceralidade. E não é bom só para debater. Na riqueza de sua dramaturgia, eis um magnífico filme de gênero, só que extraído da mais pura realidade.





ENTRE A LUZ E A SOMBRA

Brasil, 2000-2009

Direção, produção, fotografia e som:
LUCIANA BURLAMAQUI

Edição: MATIAS LANCETTI, LUCIANA BURLAMAQUI, DANIEL A. RUBIO

Edição de som: VOX MUNDI/JUVENAL DIAS

Música: MARCUS VIANA

Duração: 150 minutos

Site oficial: clique aqui

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