Amor e violência são os macrotemas dominantes no cinema brasileiro contemporâneo. De um lado, temos as comédias românticas, protagonizadas pelo star-system nacional e em boa parte ignorantes da realidade do país ao seu redor. De outro, uma investida sôfrega na violência urbana, ávida por revirar as tripas de uma hiperrealidade vigente hoje (Tropa de Elite, Cidade de Deus) ou ontem (400 Contra 1, Quase Dois Irmãos). A violência surge não só como um paradigma dramatúrgico de conflito, numa tradição que nasceu com as tragédias gregas, mas principalmente como forma “rentável” de mostrar as contradições brasileiras.
Nesse panorama, Cabeça a Prêmio apresenta variantes muito interessantes. A começar pelo entrelaçamento entre amor e violência, com uma complexidade rara em nossos filmes. Mais importante ainda é o retrato que apresenta da violência surda, contumaz e corriqueira que adensa a atmosfera do Centro-Oeste, região de fronteiras e aonde a lei parece demorar mais a chegar.
O momento é de aperto para os irmãos Miro e Abílio, coronéis de gado e drogas. O cerco da legalidade se fecha sobre eles, suscitando reações diferentes de cada um, ao mesmo tempo que os caminhos afetivos também parecem se estreitar à sua frente. Tudo é tocaia no filme. Da polícia federal contra os senhores feudais; deles próprios contra seus desafetos; dos matadores contra suas vítimas potenciais; dos homens contra as mulheres, mais de uma vez associadas a cavalos. De longe percebemos o advento de um Brasil mais vigilante e legalizante, mas ainda sujeito à corrupção e ao despotismo dos velhos poderes.
Apesar da inserção cada vez maior dos movimentos sociais e da ampliação dos assentamentos, sabemos que a violência no campo está longe de ser erradicada. Os documentários Esse Homem Vai Morrer, de Emilio Gallo, ainda inédito, e Quem Matou Irmã Dorothy? (caso mencionado por um personagem de Cabeça a Prêmio) escancaram a impunidade dos matadores a serviço do latifúndio. O país muda, mas a permanência das relações violentas, nas cidades e nos grotões, põe à prova a capacidade do estado e mesmo da família para promover o apaziguamento.
O belo filme de Marco Ricca, espécie de Irmãos Coen com gestos mais lentos e boca mais seca, traz o amor e a violência perpassados pela obsesão da posse. Num mundo que se encaminha para a ideologia do compartilhamento, essa conduta senhorial ainda nivela patrões e matadores, e soa como uma cota de barbárie que teima em resistir. Cabeça a Prêmio demonstra como o cinema e a literatura têm conversado bem quando se trata de iluminar as feridas intestinas de um país pacífico somente da pele para fora.
Texto publicado originalmente na Rio Show, O Globo, 20.08.2010
CABEÇA A PRÊMIO
Brasil, 2010
Direção: MARCO RICCA
Roteiro: FELIPE BRAGA, MARCO RICCA, MARÇAL AQUINO
Fotografia: JOSÉ ROBERTO ELIEZER
Montagem: MANGA CAMPION
Música: EDUARDO QUEIROZ
Elenco: FULVIO STEFANINI, ALICE BRAGA, CASSIO GABUS MENDES, OTAVIO MULLER, EDUARDO MOSCOVIS, DANIEL HENDLER, ANA BRAGA
Duração: 104 minutos