Críticas


DEUS É BRASILEIRO

De: CARLOS DIEGUES
Com: ANTONIO FAGUNDES, PALOMA DUARTE, WAGNER MOURA, BRUCE GOMLEVSKY
04.02.2003
Por Daniel Schenker
PELO RETORNO DO LÚDICO

Depois de fazer Deus percorrer léguas e léguas testemunhando os descaminhos de suas criaturas – primeiro enraivecido e depois reconhecendo seu amor pela humanidade imperfeita –, Cacá Diegues imprime uma colocação pessoal na sequência final de Deus é Brasileiro. Apesar de ter sido conduzido para alcançar a intensidade de um clímax emocional, o desfecho recupera um “sentido lúdico” que vigorava até poucas décadas mas que acabou suprimido pela impessoalidade extrema das leis de mercado.



A questão, ainda sem solução não só para Cacá como para o mundo, reside em como reencontrar a fonte do encanto numa época tão descrente e nebulosa como a atual. Não se trata de criar figuras imbuídas de alegria infinita. Filme dotado de ímpeto vital, Bye Bye Brasil contava com uma personagem desencantada, interpretada por Betty Faria, que partia para a prostituição nos momentos mais difíceis – aqueles em que a dissolução dos sonhos (não tanto os artísticos mas principalmente os pessoais) ficava evidente. O grupo de prostitutas de Deus é Brasileiro , em contrapartida, ganhou um registro de humor que aponta para a alienação dos dias que correm.



No entanto, Cacá Diegues parece influenciado por este presente pouco estimulante (vale lembrar que Bye Bye surgiu num outro contexto – o da Anistia –, munido da eletricidade reprimida pela ditadura), na medida em que vem assinando filmes menos viscerais nos últimos anos (vide as concessões em Tieta , a falta de química entre os protagonistas e a reconstituição estilizada da favela em Orfeu , algo que também acomete Deus é Brasileiro na fotografia assinada pelo mesmo Affonso Beato). O problema, aliás, não está em ser influenciado – até porque não há como atingir um distanciamento completo em relação ao momento em que se vive – e sim em ser tragado e tornar-se incapaz de enxergar as mazelas existenciais do aqui/agora.



Foram personagens conflituados e não simplesmente panorâmicas de determinadas realidades que potencializaram muitos trabalhos de Cacá Diegues (e um bom exemplo está na construção da relação entre Orfeu e o traficante e amigo de infância Lucinho, em especial no momento em que este questiona a justiça em privilegiar uma paixão recente – no caso, por Eurídice – em detrimento de um contato de vida inteira). O olhar humano deve se estender para a geografia – contaminação realizada na captação do conjunto habitacional de Guadalupe em Um Trem Para As Estrelas e da Tranzamazônica em Bye Bye Brasil – e esta percepção está quase ausente em Deus é Brasileiro , cujos personagens seguem numa viagem sem o sabor da travessia, do deslocamento, “sob a desculpa” de se confrontarem com a documentação da realidade. O real pode até bater na tela de maneira contundente, mas a sua lógica calcada na aniquilação do passado (a derrocada do artesanal em Bye Bye Brasil , os costumes do subúrbio em Chuvas de Verão ) para celebrar um novo muitas vezes menos consistente só será desvendada com um alto nível de comprometimento íntimo.



# DEUS É BRASILEIRO

Brasil, 2002

Direção: Carlos Diegues

Roteiro: Carlos Diegues, João Emanuel Carneiro e João Ubaldo Ribeiro

Fotografia: Affonso Beato

Elenco: Antonio Fagundes, Paloma Duarte, Wagner Moura, Bruce Gomlevsky, Stepan Nercessian, Hugo Carvana, Castrinho.

Duração: 110 minutos

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário