Críticas


HOMENS E DEUSES

De: XAVIER BEAUVOIS
Com: LAMBERT WILSON, MICHAEL LONSDALE, OLIVIER RABOURDIN
17.04.2011
Por Susana Schild
O MAL POR CONVICÇÃO RELIGIOSA

Texto publicado originalmente no Segundo Caderno de O Globo em 14/04/2011



“Os homens nunca fazem o mal tão completamente e com tanto entusiasmo como quando o fazem por convicção religiosa.” A frase proferida pelo filósofo Blaise Pascal em meados do século XVII é evocada por um monge trapista às vésperas do século XXI, não em tom de condenação mas de perplexidade.



Homens e Deuses (título original: Des hommes et des dieux), inspirado em fato real, com direção de Xavier Beauvois, saiu com o Grande Prêmio do Júri do último Festival de Cannes, recebeu o César de melhor produção francesa de 2010, foi sucesso de bilheteria em seu país, e tem sido recebido com entusiasmo no circuito internacional - uma acolhida surpreendente levando em conta a essência de sua trama: o comprometimento de uma pequena comunidade religiosa com seus princípios – custe o que custar.



Nos anos ‘90, oito monges trapistas franceses vivem em um monastério incrustado em montanhas argelinas. Dedicam-se a um cotidiano ritualizado, dividido entre orações e atividade s ligadas à subsistência. Paralelamente, desenvolvem uma harmoniosa convivência com a população muçulmana local, compartilhando suas dores e pequenas celebrações populares, sem nenhuma pretensão de catequese. Neste grupo sem hierarquia, dois religiosos se destacam: Frei Christian (Lambert Wilson, em contenção primorosa), que tem sobre a mesa um exemplar do Alcorão ao lado de textos de São Francisco de Assis, e Frei Luc (o veterano Michael Lonsdale, soberbo), um velho médico debilitado e um poço sem fundo na capacidade de doação.



Quando fundamentalistas islâmicos assassinam um grupo de trabalhadores estrangeiros, a harmonia é subitamente esfacelada. O Exército intervém, sem aliviar o clima de insegurança. Autoridades locais aconselham os monges a voltarem para casa – não podem garantir pelas suas vidas. Cabe a um oficial proferir a única ligação entre o passado dos dois países envolvidos, responsabilizando a truculenta ocupação francesa pela herança de violência e radicalismo que proliferou na Argélia.



A tensão entre os dois lados é construída com habilidade, com fotografia que acentua os tons cinza e azulados da vida monástica, eventuais respiros através da natureza áspera e poderosa. Entre os muros do monastério, a liturgia, os cantos, o atendimento aos carentes. Fora dos muros, uma violência crescente e incontrolável. “Hoje as pessoas matam sem saber o motivo” lamenta um muçulmano. Os agressores ‘visitam’ o monastério em busca de auxílio médico. Um diálogo áspero entre as duas partes na noite de Natal parece sacramentar diferenças inconciliáveis



Apesar da tentativa de manter a normalidade, os religiosos apresentem uma cisão: alguns decidem ficar, outros desejam partir. Afinal, não são santos nem deuses, apenas humanos, talvez demasiadamente humanos. Têm seus medos, , fraquezas, aspirações e, se abraçaram a causa religiosa, não se sentiam tentados pelo papel de mártir - até então.



As discussões sobre ficar ou partir se encaminham para uma decisão coletiva, celebrada durante um jantar regado a duas garrafas de vinho e embalado pelo Lago dos Cisnes de Tchaikowsky. Uma bela cena, praticamente sem palavras, em que cada rosto parece revelar que aqueles homens são, antes de tudo, reféns de suas consciências. E sem possibilidade de negociação.



Com uma filmografia de temas e estilos diversificados - Não esqueça que você vai morrer (sobre um rapaz portador de HIV), O pequeno tenente (um policial urbano), Selon Mathieu (um drama familiar) - Xavier Beauvois não sugeria nenhuma vocação religiosa. Ao narrar o episódio do ponto de vista dos monges, ele oferece uma obra austera, reflexiva e extremamente contemporânea sobre os impasses da convivência entre homens de credos e deuses diferentes, sujeitos à barbárie em vários pontos do planeta.



# HOMENS E DEUSES (DES HOMMES ET DES DIEUX)

País, 2010

Direção: XAVIER BEAUVOIS

Roteiro: ETIENNE COMMAR e XAVIER BEAUVOIS (diálogos)

Fotografia: CAROLINE CHAMPETIER

Edição: MARIE-JULIE MAILLE

Elenco: LAMBERT WILSON, MICHAEL LONSDALE, OLIVIER RABOURDIN

Duração: 122 minutos

Site oficial: http://www.sonyclassics.com/ofgodsandmen



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