O final da vida de José Lewgoy foi bem diferente do destino de um típico vilão das telas, que normalmente no fim dos filmes é desmascarado, derrotado e condenado ao ostracismo. Até bem pouco antes de morrer, no último dia 10, no Rio, de parada cardiorrespiratória, ele ocupava ativamente papel de mocinho na cultura brasileira: enquanto muitos só surgem em cena na hora de resmungar contra falta de verba e de apoio para filmar, Lewgoy, aos 82 anos continuava emendando um trabalho no outro, e seguia cheio de planos para sua longeva e brilhante carreira.
Logo ele, que nas últimas décadas criou fama de rabugento e resmungão. Rabugento? Puro charme de um ator que tinha a elegância como um traço comum à maioria dos personagens que interpretou, inclusive aquele que construiu para si fora das telas. Uma de suas últimas “performances” foi uma carta enviada ao jornal “O Globo”, em que achincalhava as liberdades que o escritor Braulio Tavares tomou ao analisar o filme O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, em livro recém-lançado. Há quem garanta que Lewgoy sequer leu o livro. A matéria que saíra no Globo poucos dias antes teria sido suficiente para que ele resolvesse acrescentar mais um episódio à sua coleção de rabugices fabricadas.
Lewgoy gostava de se manter em evidência, o que acontecia não apenas por causa dos filmes que nunca deixou de fazer. A imprensa, a quem ele sempre usou para cultivar a fama de irritadiço, também não o deixava em paz. Qualquer enquete ou polêmica envolvendo cinema, lá estava José Lewgoy pronto pra responder. Às vezes com humor ferino, como ao justificar porque não gostava dos modernos cinemas multiplexes para uma matéria da revista Veja Rio: “Você entra num lugar desses, anda um bocado e depois descobre que tem que pegar um táxi até a sala 16”.
Nos últimos anos, andava com dificuldade, amparado por uma bengala, o que não o impedia de fazer um de seus programas favoritos: assistir filmes, do mais hermético europeu ao mais comercial dos hollywoodianos. Também não perdia uma pré-estréia ou sessão para convidados de recentes lançamentos nacionais. Até porque atuava em muitos deles, como Sonhos Tropicais, de André Sturm, lançado ano passado. Sem dúvida estaria presente no lançamento (previsto para maio) de Apolônio Brasil, O Campeão da Alegria, em que foi dirigido pela primeira vez por seu velho amigo Hugo Carvana. As filmagens terminaram em setembro do ano passado, e Lewgoy interpreta, pela enésima vez, um vilão: ele é um cientista que quer clonar o cérebro do protagonista, vivido por Marco Nanini.
Carvana admite que, ao convidá-lo para o filme, queria prestar uma dupla homenagem: à chanchada e ao próprio Lewgoy, que viveu tantos tipos marcantes parecidos nos anos 50. Afinal, o sucesso da chanchada marca também o início do sucesso de sua carreira como ator de cinema. Em 1949, Lewgoy regressou de uma temporada de dois anos na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, onde fora estudar Arte Dramática com uma bolsa ganha graças ao seu bom desempenho como ator de teatro em Porto Alegre. Decidido a fazer cinema, ele veio parar no Rio de Janeiro, onde conseguiu um papel de rufião, contracenando com Tônia Carrero, no drama Quando a Noite Acaba, de Fernando de Barros. Quando o filme foi relançado, em 1950, com o título de Perdida Pela Paixão, Lewgoy já faturaria seu primeiro prêmio, o de Melhor Ator Secundário concedido pela Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos.
Nesse meio tempo, veio o primeiro contato com a chanchada. Ao ser apresentado a Watson Macedo, que procurava um vilão para o filme Carnaval no Fogo, teve que encarar a desconfiança do diretor, que não sabia se aquele tipo magro e de bigodinho fino seria capaz de encarar de frente o galã forte e grandalhão Anselmo Duarte. Mas o papel do bandido internacional que tinha um plano para assaltar turistas no Hotel Copacabana Palace durante o Carnaval acabou ficando mesmo com ele. O filme foi um sucesso, e mudou a vida de José Lewgoy já a partir da pré-estréia, ocorrida no tradicional Cine São Luiz. Sem convite e sem dinheiro, ele só entrou depois que o jornalista e futuro cineasta Jorge Ileli pagou sua entrada. Na saída, foi reconhecido pelos caçadores de autógrafos que tinham acabado de assistir ao filme e precisou de escolta policial para deixar o cinema.
Foi o primeiro de uma série de vilões inesquecíveis que viriam a seguir e que associariam de vez o nome de José Lewgoy às chanchadas da Atlântida. Em Aviso aos Navegantes (1950), de Watson Macedo, um dos maiores clássicos do gênero, ele interpretou o Professor Scaramouche, espião internacional que se passa por mágico a bordo de um transatlântico, contracenando com Oscarito, Grande Otelo e Anselmo Duarte. Dois anos depois, seria a vez de Jorge Ileli dirigi-lo em outro grande filme da Atlântida, que apesar de trazer astros da chanchada como Lewgoy, Grande Otelo, Eliana Macedo e Wilson Grey, está mais para thriller policial: Amei um Bicheiro, que rendeu a Lewgoy o prêmio de Melhor Ator no I Festival de Cinema do Distrito Federal (RJ).
Boa parte do sucesso pode ser atribuído ao seu refinamento intelectual e dramático, que ajudava a conferir aos personagens que interpretava verossimilhança e credibilidade. Poucos atores da época possuíam o estofo intelectual de Lewgoy. Afinal, quando deixou sua pequena cidade natal, Veranópolis, para ir morar em Porto Alegre, estudou num ginásio americano, depois formou-se na Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas de Porto Alegre e trabalhou na Editora Globo, onde conviveu com escritores do quilate de Érico Veríssimo, Mário Quintana e Dionélio Machado.
Mas Lewgoy achava que, com toda a erudição que havia adquirido no Brasil e na Universidade de Yale, merecia mais reconhecimento. Se mandou para a Europa com o pretexto de assistir ao Festival de Cannes em 1954 e acabou ficando dez anos por lá, na tentativa de se firmar como ator de cinema internacional. Chegou a passar dificuldades em Paris até conseguir o primeiro papel, na produção francesa S.O.S. Noronha, dirigida por Georges Rouquier. O filme não era grandes coisas, mas deu a Lewgoy a oportunidade de trabalhar com o grande ator Jean Marais, um de seus ídolos. Em seguida, chegou a participar de outros filmes de pouca repercussão. Com o surgimento da Nouvelle Vague, viu suas chances de sucesso diminuírem e a partir de 1960 passou a trabalhar com importação de café brasileiro.
Quando parecia que o grande vilão das chanchadas deixaria a promissora carreira de ator e o Brasil definitivamente para trás, Lewgoy resolveu voltar. Primeiro retomou o trabalho no teatro, e, com a experiência adquirida no exterior, foi chamado para participar de algumas produções cinematográficas internacionais, como Uma Rosa Para Todos, do italiano, Franco Rossi, em que contracenou com Claudia Cardinale. Mas seria com o papel do político inescrupuloso da república de Eldorado, em Terra em Transe, de Glauber Rocha, que Lewgoy recuperaria o prestígio como ator de cinema.
A relação com Glauber não era das mais fáceis, mas em compensação ele saiu ileso das intermináveis brigas entre o ator Klaus Kinski e o cineasta Werner Herzog, com quem trabalhou em Fitzcarraldo. Se deu tão bem com Herzog que o alemão o chamaria para trabalhar em outro filme seu, Cobra Verde. Os convites de produtores estrangeiros não paravam de surgir. Era como se todo filme gringo rodado no Brasil precisasse contar com o selo de qualidade que era a presença de Lewgoy em cena. Luar Sobre Parador, de Paul Mazursky, Feitiço do Rio, de Stanley Donen, e a co-produção O Beijo da Mulher Aranha, de Hector Babenco, foram alguns deles.
Mas não pense que Lewgoy enriqueceu por causa disso. Luar Sobre Parador, uma produção de US$ 20 milhões rodada em Ouro Preto, rendeu a Lewgoy US$ 20 mil. “Por cinco dias de trabalho, valeu a pena”, declarou na época. Nas décadas de 70 e 80 acabou se tornando um dos atores que mais trabalhou no cinema brasileiro, com papéis em filmes que iam de comédias (Eu Dou o Que Ela Gosta, Um Soutien Para Papai) a filmes sérios como Tabu, de Julio Bressane. Isso sem falar nos inúmeros personagens marcantes que interpretou nas novelas da Rede Globo.
Na fase de retomada do cinema nacional, nos anos 90, Lewgoy continuou sendo um dos atores mais requisitados, e assim continuaria pelos próximos anos. Além do recém-concluído filme de Carvana, iria interpretar mais um personagem estranho, um chefe de manicômio chamado Professor Monreau, no novo filme de Ivan Cardoso, O Sarcófago Macabro. E estava escrevendo um livro de memórias, preparando seu próprio website...a cultura brasileira vai sentir falta de suas rabugices.
Adaptado de artigo do autor publicado na Gazeta Mercantil em 14.02.2003