Críticas


GREGÓRIO DE MATTOS

De: ANA CAROLINA
Com: WALY SALOMÃO, MARÍLIA GABRIELA, RODOLFO BOTTINO, ELISA LUCINDA
23.02.2003
Por Carlos Alberto Mattos
O BOCA POR SUA PRÓPRIA BOCA

Por motivos que não cabe aqui especular, os cineastas brasileiros andam redescobrindo os poetas brasileiros. Silvio Tendler e Sylvio Back flertaram com o documentário encenado em, respectivamente, Castro Alves – Retrato Falado do Poeta e Cruz e Souza – O Poeta do Desterro. Paulo Thiago misturou os registros em O Poeta de Sete Faces, sobre Drummond. Isto sem falar no português Bocage, recriado em chave experimental no belo Bocage – O Triunfo do Amor, de Djalma Limongi Batista. Na investida mais recente, Ana Carolina, que iniciou sua carreira no documentário, retrata Gregório de Mattos sem maiores subtítulos ou segundas intenções explícitas.



Gregório de Mattos é um filme-recital substantivo, que não se perde em desvios biográficos nem pretende reencenar o Brasil do século 17. No início do filme, quando vemos a cena do nascimento de Gregório e, logo em seguida, a abadessa vivida por Marília Gabriela introduz dados da vida do poeta, cruzando com ele pelos becos da suposta Salvador, tudo indica que teremos um ensaio biográfico temperado por brincadeiras com o tempo e a narração. Mas essa perspectiva logo se desconstrói, pois o que interessa a Ana Carolina é, mais que tudo, a palavra. O fulgor barroco dos poemas vai devorar qualquer outra figura de linguagem.



A palavra, que sempre foi o trunfo maior da cineasta, reina possante em Gregório de Mattos. As vozes do elenco comandam o curto espetáculo de 70 minutos, mesmo quando o gestual ajuda a sublinhar o tom de delírio. Como não tinha Glauber Rocha à mão para viver Gregório, Ana Carolina fez boa opção pelo poeta baiano Waly Salomão. O que poderia ser um tédio infinito se transforma numa divertida e instrutiva apresentação à poética palavrosa e voluteante de Gregório de Mattos. Salomão escande as palavras e as acolchoa com meneios de mãos que nos ajudam a penetrar no ritmo e na essência dos versos. Eles ficam quase concretos na tela, diante de nós. Não é Gregório, mas Waly dizendo Gregório. E isso é bom.



O mesmo ocorre com as intervenções das abadessas (Marília Gabriela, Ruth Escobar e Guida Viana), da mulata (Elisa Lucinda) e do capitão (Rodolfo Bottino). Todos partilham do gosto pela malícia, a escatologia e o tom farsesco que não são nenhuma novidade em se tratando de Ana Carolina. Quem viu Mar de Rosas, Das Tripas Coração, Sonho de Valsa e o mais recente Amélia já conhece aquela irreverência anticlerical, aquele aceno à transgressão sexual como afirmação política e aquela maneira transversa de psicanalisar o país. A diretora está no seu elemento.



O filme é formalmente despretensioso, mas obtém, através da fotografia ligeiramente sépia de Rodolfo Sanchez, uma tonalidade ambígua entre a sugestão de época e o comentário contemporâneo. Da mesma forma, a filmagem em fortalezas de Niterói, quase sempre com planos fechados de muros, passagens cobertas e becos, criou uma ambientação mais teatral que realista. Isso vem ressaltar o aspecto não-documental, mas puramente lúdico, de Gregório de Mattos. Ana Carolina faz o elogio do Boca do Inferno pela boca dele próprio. Pode parecer confuso aqui e ali. Pode frustrar o espectador viciado em informação indireta. Mas para quem se dispõe a mergulhar de cabeça na embriaguez verbal do autor de Triste Bahia, o convite é irrecusável.



Só resta imaginar que diabos levou a diretora a dedicar o filme (em vez de agradecer simplesmente) ao governo do Estado da Bahia. Se vivo estivesse, o furibundo e arrevesado Gregório certamente arrojaria dois ou três palavrões bem calibrados contra tal dedicatória.







# GREGÓRIO DE MATTOS

Brasil, 2003

Direção: Ana Carolina

Fotografia: Rodolfo Sanchez

Figurino: Natália Stepanenko e Cristina Kangussu

Som direto: José Moreau Louzeiro

Produção executiva: Jean Robert

Elenco: Waly Salomão, Marília Gabriela, Ruth Escobar, Guida Viana, Tonio Carvalho, Rodolfo Bottino, Elisa Lucinda, Xuxa Lopes, Virginia Rodrigues.

Duração: 70 minutos



Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário