Dois fatos externos jogaram sombras e luzes sobre Melancolia. Primeiro, a coletiva desastrada em Cannes, quando Lars Von Trier, numa fronteira ambígua entre a provocação e a confissão, se disse “um nazista” e admitiu “compreender Hitler”. O assunto foi trazido à baila a propósito de uma entrevista anterior, em que ele falou de sua “fraqueza” pela estética nazista, e do uso extensivo da música de Richard Wagner. Embora não tenha necessariamente contaminado a leitura do filme – que nada tem de nazista, mas sim corteja o romantismo alemão –, o episódio criou um campo de rejeição que favorece os desafetos do diretor.
O outro fato foi o recente atentado do atirador ultranacionalista na Noruega, um choque quase tão duro para a sociedade escandinava quanto uma colisão de planetas. Não quero atribuir a Melancolia a condição de metáfora social assumida. Antes pelo contrário, Von Trier faz questão de ressaltar o isolamento desse grupo em relação ao resto da sociedade. Não só pela localização remota da mansão, mas principalmente pela alienação com que eles enfrentam até mesmo a iminência do fim do mundo. “Isso não tem nada a ver com o povoado”, diz alguém a respeito da catástrofe que se anuncia. Ainda assim, uma leitura possível do filme é a do pavor de uma comunidade diante da perda de seus rituais e de sua segurança.
No primeiro ato, “Justine”, o medo tem uma origem doméstica, íntima, interior. Justine (Kirsten Dunst), a noiva vacilante, transforma os sintomas de depressão em atentados ao bom andamento da cerimônia de casamento. Coadjuvada pela mãe superácida (Charlotte Rampling) e pelo pai meio psicótico (John Hurt), ela contesta os rituais da pontualidade, da fidelidade e da submissão. É uma espécie de apocalipse familiar o que ela provoca com suas atitudes. Nesta metade do filme, tudo se relaciona com sua angústia e insatisfação. Desse ponto mais introvertido de uma metafísica da alma, Melancolia passa no segundo ato para uma escala cósmica, um flerte com a filosofia da ciência, em que a fragilidade não é mais de uma pessoa, mas de toda a vida na Terra.
Nomeado “Claire”, o segundo ato configura uma fenomenal mudança de escala e uma inversão de pontos de vista a respeito das duas irmãs. Claire, que parecia mais forte e integrada ao círculo das formalidades, revela-se uma mulher avassalada pelo pânico. Justine, a desequilibrada, é quem vai encarar o cataclisma com a serenidade dos que reconhecem o inevitável. Com essa polaridade ousada e vertiginosa, Von Trier cria um ensaio épico sobre o medo dos choques, da perda de estabilidade e da irrupção do caos.
Tem sido cada vez mais raro esse tipo de filme que se atreve artisticamente a ponto de provocar entusiasmo e repulsa em medidas quase iguais, dependendo de como o espectador se coloca ante as obsessões do cineasta. Em matéria de abalo cênico, Melancolia é muitíssimo mais suave que Anticristo e mesmo que a maioria dos filmes anteriores de Von Trier. No entanto, o alcance de suas sugestões é tão grande quanto o de Ondas do Destino, Dançando no Escuro, Dogville e Os Idiotas. Trata-se de examinar o ser humano numa rede de relações com o entorno em suas distintas dimensões: a família, a comunidade, o conceito de normalidade, a autopercepção dentro da mecânica do mundo e – agora pela primeira vez – a vulnerabilidade extrema da espécie humana perante os desastres da mente e do cosmos. Correlação tão ambiciosa no cinema recente só me lembro da que fez Patricio Guzmán no seu Nostalgia da Luz, vinculando estrelas e ossos, planetas e bolas de gude, memória política e astronomia.
Para quem se derreteu com o prólogo cartão-postal de Meia-noite em Paris, os primeiros minutos de Melancolia devem parecer uma viagem à estratosfera. Von Trier situa ali não só imagens-símbolo da síndrome que vai tratar, como também as referências estéticas com que vai trabalhar ao longo do filme. A base são as pinturas alemães e pré-rafaelitas, além das citações explícitas dos quadros Ophelia, de John Everett Millais, e Caçadores na Neve, de Bruegel, sem falar na fotografia ultra-estilizada do americano Gregory Crewdson e no cinema de Andrei Tarkovski. Mas o tratamento dessas imagens ecoa também a estética da publicidade, relacionada à ocupação profissional de Justine. Visto assim, o prólogo bem pode ser uma introdução ao pensamento convulsionado de Justine e à paranóia da irmã Claire.
O campo de golfe, espaço do jogo organizado e civilizado, é o teatro onde se dão as cenas mais cruciais dessa fábula contemporânea. Nela se encontram a ficção científica e o drama burguês, o intimismo profundo e o expressionismo delirante, o in e o out em suas conformações mais extremas. Talvez, como sonhava Wagner, uma tentativa da “obra de arte total”.