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O QUE QUEREM OS ARTISTAS CONTEMPORÂNEOS?

11.09.2011
Por Carlos Alberto Mattos
O QUE QUEREM OS ARTISTAS CONTEMPORÂNEOS?

Riscado e Os Monstros são filmes que, através das atitudes de seus personagens, ajudam a pensar certas atitudes do jovem cinema brasileiro. Ajudam, antes de mais nada, por serem bons filmes. Neles, o prazer da fruição vem junto com a funcionalidade do diagnóstico.



Ambos têm em comum tratar da condição do artista contemporâneo a partir de uma dramaturgia fortemente baseada em vivências pessoais. Riscado trata de uma jovem atriz que ganha a vida com imitações de grandes estrelas, divulgação e animação de eventos, festas etc. Está à espera da oportunidade de um salto, que pode vir sob a forma de um contrato para uma grande produção internacional. O argumento inspira-se diretamente na carreira da atriz Karine Teles, mulher do diretor Gustavo Pizzi, que passou por algo semelhante no elenco de Rio Sex Comedy, de Jonathan Nossiter.



Bianca, a atriz esplendidamente interpretada por Karine (melhor atriz na Première Brasil do Festival do Rio de 2010), representa uma aspiração comum a muita gente, que é participar ativamente do sistema da indústria cultural, embora sem abrir mão de sua personalidade. “Quero fazer um filme honesto”, diz ela num dos muitos momentos em que fala ao mesmo tempo do filme e do filme-dentro-do-filme. Nesse espelhamento construído poeticamente, cena após cena, Riscado encontra sua profunda autenticidade como depoimento não só de Bianca, mas de toda uma geração de artistas que podem ali se ver refletidos. Gente que quer viver do seu trabalho e encontrar seu lugar na ribalta.



Ao mesmo tempo, Riscado é um filme que se quer, ele também, participante. É a produção mais caprichada e mais bem-sucedida até agora do grupo reunido em torno de Cavi Borges na Cavídeo. Não contou com patrocinadores, mas com investidores, parceiros e contribuições de amigos. Feito com carinho e cuidado, assim como Bianca, o filme quer entrar no sistema sem perder a alma. Modesto na proporção, mas criativo ao tratar de si mesmo, tem rodado por festivais internacionais e chega aos cinemas com um trabalho de comunicação dos mais dignos. Pena que meu amigo Daniel Schenker exagerou no rigor com seu bonequinho de O Globo. Riscado merece aplausos.



A mesma atenção deve ser dirigida a Os Monstros, que está na Sessão Vitrine do Cine Joia até quinta próxima, sempre às 15 horas. O esquema de produção no coletivo cearense Alumbramento guarda semelhanças com o de Riscado. Os quatro diretores/autores/atores - Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti – o viabilizaram nos mesmos moldes do anterior Estrada para Ythaca, ou seja, com dinheiro do próprio bolso e de amigos. Mas nesse caso temos um movimento bem diverso com relação ao tal sistema da indústria cultural. O quarteto costuma negar qualquer intenção de entrar no mercado, seja o dos editais, seja o do consumo puro e simples. Seus filmes não têm o desejo de agradar a não ser a eles próprios e a alguns próximos, muito embora pelo talento acabem agradando a bem mais gente. A história contada em Os Monstros parece comentar essa rejeição ao sistema.



Se em Ythaca os quatro companheiros inseparáveis partiam em viagem por causa da morte de um amigo comum, o mote que os reune em Os Monstros é a separação conjugal de um deles. Dois são técnicos de som, que resolvem largar o emprego na televisão, outros dois são músicos de vanguarda. Numa cena de auto-ironia emblemática, um deles toca flauta num bar enquanto os frequentadores vão saindo e restam apenas os amigos fiéis. Na cena final, muito discutida no Festival de Tiradentes, os quatro se reunem para dois longos duetos de guitarra e flauta, símbolo sonoro de uma opção radical pela liberdade.



Aqui os artistas estão saindo do sistema (casamento e emprego) e optando pela arte como evento pessoal. De certa maneira, fazem o percurso inverso de Bianca em Riscado. Esses “monstros” da margem personificam também um contingente de criadores que desejam – ao menos teoricamente – permanecer numa faixa alternativa. Não propriamente marginais, mas cultores de uma arte mais íntima, mais insular, em que a experiência de vida não precisa ser convertida a algo próximo do espetáculo.



Cada qual a sua maneira, Riscado e Os Monstros trazem um imenso frescor em sua forma de tratar personagens e imagens. O conto carioca de Pizzi experimenta com mídias e tratamentos de textura diferentes para expressar as várias instâncias de Bianca, das mais objetivas às mais subjetivas. Já o devaneio dos meninos do Ceará se faz com ação minimalista, vadiagens divertidas, belos silêncios e interlúdios musicais tão deliciosos quanto despretensiosos. E finalmente o que os une, para além de todas as sutis mas importantes diferenças, é a busca de uma dicção e um gestual não formatados, mas nascidos de uma observação da vida que se confunde com a própria vida.

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