Críticas


TRABALHAR CANSA

De: MARCO DUTRA e JULIANA ROJAS
Com: HELENA ALBERGARIA, MARAT DESCARTES, NALOANA LIMA
30.09.2011
Por Leonardo Luiz Ferreira
DA NORMALIDADE BROTA UMA ESTRANHEZA

O cineasta italiano Dario Argento, que ganha uma retrospectiva completa no próximo Festival do Rio, passou anos se dedicando a escrever roteiros para outros cineastas filmarem. Até que resolveu apostar em seu debut em frente às câmeras, com a ajuda na produção de seu pai, em O Pássaro das Plumas de Cristal (1970). É curioso pensar que o diretor estreou diretamente em longa-metragem sem ter sequer passado pela escola do curta. Mas isso é algo comum de acontecer. Não que esse rito de passagem seja necessário, o que se deve ter sempre em mente é a formação do olhar do realizador para com o universo que pretende abordar, e para isso não importa o formato ou bitola. No final o que interessa é o produto, a obra cinematográfica.



A dupla de realizadores Marco Dutra e Juliana Rojas tem um longo histórico de trabalhos em curta-metragem, tanto em parceria quanto individuais. O que acontece entre eles desde meados da década passada é uma perfeita sintonia, talvez só detectada também nos irmãos Pretti (Estrada para Ythaca, Os Monstros). É fato raro de uma codireção que dá tão certo que eles se transformam em apenas um. Após curtas de marcas autorais tão fortes, como Um Ramo, a chegada ao primeiro longa é um prolongamento de todo o trabalho realizado pela dupla até aqui. Trabalhar Cansa é uma verdadeira súmula da competência e maturidade de dois realizadores em constante busca do desenvolvimento de uma carreira cinematográfica consistente. E eles não poderiam ter estreado melhor com um filme que já nasce como chave do chamado “novíssimo cinema brasileiro”.



Trabalhar Cansa se inicia com um retrato aparente de felicidade no cerne de uma família de São Paulo. Os primeiros planos só evidenciam que essa imagem idealizada só existe mesmo na fotografia de cabeceira. Helena se interessa em alugar um mini-mercado, que é filmado em estado de decomposição e vendido pela corretora como uma filial de um posto de conveniência. A estética trabalha a paleta cinza e azul para introduzir uma atmosfera visual de vazio e reconstrução. Tão logo a expectativa de iniciar nova vida se estabelece, o marido recebe a notícia de que perdeu o emprego. O mercado, que teoricamente poderia unir o casal, como sugere um dos poucos instantes de alívio em uma cena de beijo no local, passa a afastá-los cada vez mais. E a narrativa desemboca em um paralelo, mas o intuito permanece intacto para discussão das relações humanas e o mercado de trabalho.



A interpretação dos atores no primeiro terço de projeção é minimalista, silenciosa e pautada por olhares e poucos diálogos. Todo o filme está estruturado em uma tensão crescente que torna críveis as ações desenroladas. É uma construção que pode parecer esquizofrênica ao olhar apressado do espectador, mas Rojas e Dutra têm total domínio da mise-en-scène e sabem exatamente onde querem chegar. Aos poucos, as ações cotidianas são atravessadas por episódios estranhos que flertam com o fantástico, como é característico na obra dos realizadores. É como se da normalidade do dia-a-dia brotasse uma estranheza, algo que o cineasta David Cronenberg (Crash – Estranhos Prazeres) desenvolveu em sua filmografia. A filiação também pode ser dada através do cinema asiático, só que tanto Apichatpong Weerasethakul (Mal dos Trópicos) quanto Tsai Ming-liang (O Sabor da Melancia) carregam as suas imagens de metáforas e alegorias.



Para a experiência de Trabalhar Cansa funcionar na tela, um grande aliado está no desenho de som, visto que não há trilha sonora a não ser a diegética. E o trabalho de Daniel Turini e Fernando Henna é soberbo nesse sentido: a construção de clima e atmosfera em uma descida ao lado oculto da personagem Helena não poderia ser melhor realçada do que aquela que o som proporciona. O espectador é envolvido na narrativa e por mais estranha que ela soe para cada um não há como não adentrar por seus meandros até o desfecho.



A serenidade dá lugar à angústia, porém o humor negro permanece ali afiado, com o timing certo para a duração de cada cena e as interpretações que esperam uma reação até eclodirem emocionalmente no desfecho em que a libertação vem através de um grito, seja ele literal ou figurativo. Trabalhar Cansa desnuda as relações do homem e a crueldade no mercado de trabalho, sem que para isso use de artifícios ou soe panfletário. E vem daí a sua beleza natural, na qual Dutra e Rojas seguem à risca a sua visão de cinema e conseguem atingir muito mais do que imaginavam.

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