Certos filmes me deixam num estado de perplexidade quando os vejo pela primeira vez. Saio com a certeza de que preciso revê-los, quando então tudo pode acontecer: da rejeição frontal à apreciação apaixonada, passando por todos os estágios intermediários. Foi o que aconteceu quando assisti pela primeira vez a O Céu Sobre os Ombros. Cheguei a comentar com o diretor Sérgio Borges: “Não sei o que pensar do seu filme, preciso ver de novo”. Pois bem, foi na segunda visita que percebi a profunda originalidade desse estranho objeto cinematográfico.
São três personagens que se alternam diante de nós, sem nenhuma relação entre si. Três núcleos dramáticos independentes. A uni-los apenas o fato de serem apresentados dentro de ônibus nas sequências iniciais e – mais importante – o fato de serem personagens plurais, que conciliam condições muito distintas na sua maneira de estar no mundo (ou no filme, pelo menos). Um deles trabalha numa padaria e num call center, é entusiasmado torcedor de futebol e devoto do Hare Krishna. Outro é um poeta imigrante de supostas tendências suicidas, que tem dificuldade para se integrar ao meio literário e cuida de um filho com características especiais. O terceiro é um travesti que se prostitui nas ruas de Belo Horizonte enquanto não está fazendo palestras sobre sexualidade, citando Foucault e Ovídio ou escrevendo requintadas cartas de amor para um amante imaginário.
Nada nos assegura o quanto de documentário ou de ficção existe em cada uma das situações vividas ou mencionadas por eles. Nas entrevistas e debates, o diretor dribla toda pergunta nesse sentido, fazendo questão de deixar a decisão de “acreditar” ou não para o foro íntimo de cada espectador. É justamente nessa ambiguidade que reside o encanto do filme, como em muitos de Abbas Kiarostami. Mas, ao contrário da maioria dos filmes de aspecto documental, Sérgio Borges usa uma linguagem muito peculiar para construir suas cenas. Nada é exposto ao “olho natural” do acaso. Tudo é composto com uma sucessão de fragmentos, a montagem deslocando nosso olhar frequentemente para detalhes inesperados. Da mesma forma, a câmera de Ivo Lopes Araújo (o Walter Carvalho do jovem cinema brasileiro) raramente aponta para o enquadramento esperado, a “melhor posição”. Há uma preferência por ângulos subsidiários, em que nem sempre o centro da atenção está no centro do quadro ou mesmo dentro dele, criando com isso uma espécie de expansão do campo visual e sonoro para além do que se vê na tela.
Ao mesmo tempo, há um naturalismo quase blasé nas atuações, uma espontaneidade que às vezes leva a cena aos limites da não-representação. A surpresa vem desse misto de naturalismo de enunciação e sofisticação de estilo. No entanto, há também uma luz tosca, cortes bruscos e secos, tudo contribuindo para a hibridez intrigante do filme. A banalidade é constantemente transcendida por uma poética que nasce da ambivalência fundamental daqueles seres meio marginais, meio improváveis, meio admiráveis em sua singularidade.
Tal é a força dos dois outros personagens que o jovem Hare Krishna fica em desvantagem, a ponto de alguns espectadores até o esquecerem ao final do filme (já percebi isso em dois deles). Quando sobem os créditos finais, a sensação de surpresa é inevitável, uma vez que nos é retirado todo o amparo dramatúrgico de um final. Mas se lembrarmos do início igualmente súbito e “despreparado”, vamos compreender que este não é um filme acabado no sentido convencional. Ele apenas nos franqueia um relance, uma visão passageira, na vida de três criaturas que não sabemos se existem, mas que são fortes na maneira única como nos é dado conhecê-las.