Críticas


DAMA DE FERRO, A

De: PHYLLIDA LLOYD
Com: MERYL STREEP, JIM BROADBENT, ALEXANDRA ROACH, RICHARD E. GRANT
03.02.2012
Por Luiz Fernando Gallego
HAGIOGRAFIA COM MÁ FÉ

O crítico de cinema americano Rex Reed, ao escrever para o New York Observer, resumiu bem o interesse que se possa ter sobre A Dama de Ferro, filme pelo qual Meryl Streep concorre pela enésima vez ao prêmio da Academia de Hollywood; ele disse algo como vale a pena ver Meryl Streep, mesmo que o filme não valha a pena. É verdade. A capacidade interpretativa da atriz é sempre surpreendente, apesar de já sabermos disso há muito tempo. É um prazer ver Meryl trabalhar, mesmo que nem sempre seus filmes, no todo, sejam admiráveis. E isso fica bem acentuado desta vez.



É possível que ela discorde da segunda parte da sentença de Reed: afinal, aceitou o script de Abi Morgan (que está em evidência pelo roteiro de Shame, badalado filme de Steven McQueen com Michael Fassbander e Carey Mulligan, concorrente a muitos prêmios na Inglaterra mas “forte demais” para premiações americanas). E a diretora Phyllida Lloyd é a mesma de um sucesso popular anterior da estrela, o brega, eventualmente divertidinho Mamma Mia !. Uma relação de confiabilidade deve ter se estabelecido entre a atriz e a cineasta. Pior para a atriz, pois o novo filme não deixa de ser cansativo e pouco interessante, apesar da fantástica maquiagem (também indicada ao Oscar) que ajuda a transformar Meryl em Margareth Thatcher: sob camadas de materiais aplicados em seu rosto ela consegue transmitir mais do que expressões faciais, emoções. Ainda que a retratada tivesse uma mímica facial tão férrea quanto seu apelido.



Na parte em que os flashbacks exibem a carreira política inicial da futura primeira ministra (quando a Thatcher mais jovem é vivida pela novata Alexandra Roach), alguns aspectos da biografada podem despertar alguma atenção, já que se trata de um período, em geral, menos conhecido de sua vida. E a jovem atriz não faz feio como “jovem Meryl Streep”. Mas algumas destas cenas já servem para resumirmos qual é o tom geral do filme. Por exemplo, quando Thatcher se tornou Primeira-Ministra, já havia quase 20 mulheres na Câmara dos Comuns, mas o que vemos, insistentemente, é aquela brava e única mulher presente, cercada de homens que a hostilizam, depreciando-a ou debochando dela.



Mais do que proselitismo feminista - que poderia até ser pertinente em uma ficção sem nenhum compromisso com fatos reais – esta falácia ficou pior ainda na desculpa esfarrapada da diretora ao ser confrontada com o verdadeiro número de mulheres na política inglesa da época. A justificativa que P. Lloyd tentou foi no sentido de que pretendeu transmitir “como Thatcher se sentia do ponto de vista dela”, o que não convence absolutamente, pois o filme não adota o olhar subjetivo da biografada em quase toda sua extensão. Claro que quando vemos a já ex-ministra senil, "conversando" com seu marido - já falecido, como se vivo estivesse, o que temos na tela é o mundo mental declinante de uma idosa com Alzheimer; e a mise-en-scène dessas cenas repetitivas (de tonalidade quase piegas) é coerente com a intenção de caracterizar a vivência interna da personagem. Só que este clima é muito diferente do que é utilizado no restante do filme, aí incluídos os debates políticos. Má fé.



Essa representação da vida de Thatcher idosa também é responsável por outro aspecto questionável do filme: há um excesso de cenas deste período íntimo e retirado de sua vida. Um destaque seria a (boa, dramaticamente) abertura do filme em que vemos uma senhora titubeante em um mercado tentando comprar uma caixinha de leite, hesitando na hora de pagar no caixa, e andando perigosamente pelas calçadas. Não há como não detectar a intenção de despertar no espectador uma simpatia inicial pela velhinha frágil, já bem longe do seu período “de ferro”. Mas o desejo é que a simpatia se estenda ao passado de Thatcher.



Poderíamos até reconhecer no filme o aspecto de ter uma posição assumida (no caso, favorável) em relação à sua biografada, mas isso seria mais pertinente – e aí sim, corajoso – se tal olhar a favor fosse demonstrado no campo de sua polêmica atuação política, nunca na jogada sentimental de mostrar a Margareth senhorinha e decadente em que se transformou por conta da doença senil.



Em algum momento, o filme chega a sugerir que, mais do que uma “biografia a favor” estamos lidando com uma verdadeira hagiografia: é quando, na trilha sonora, escutamos, como recurso “emotivo” para as cenas finais, o “Prelúdio N°1" (inteiro) do "Cravo Bem Temperado" de Bach. Claro que não se trata da “Ave Maria” que Gounod compôs ao desenvolver uma melodia sobre as notas do prelúdio bachiano. Mas não há quem não associe a popularíssima música religiosa do compositor francês à peça de Bach. Ou seja, mais um pouco e Thatcher seria uma nova Nossa Senhora na visão da diretora. Ou, quem sabe, já é.



É assim, entre um feminismo primário (ao retratar Thatcher sozinha em suas atuações políticas quando as mulheres já não eram exceção absoluta na política britânica) e um olhar comovido sobra a idosa fragilizada em que ela se tornou, que A Dama de Ferro se transforma em um filme fraco - que de férreo não tem nada. E deixa a sensação de que demora mais do que seus 105 minutos.



Quanto aos pontos mais discutidos da trajetória política da Primeira Ministra, se estão presentes no filme, surgem de forma falsamente “neutra”, o que poderá, talvez, propiciar que alguns espectadores achem que roteiro e direção nem estão fazendo julgamentos de valor, e portanto, nem tão favoráveis a Thatcher. Mas o que percebemos são recriações episódicas breves, sem o mínimo dimensionamento quanto ao contexto de tais momentos, de fato, históricos. A longa greve dos mineiros (em que, segundo as manchetes da época, Thatcher teria “quebrado a espinha dorsal” dos movimentos grevistas da classe) e a “Guerra das Malvinas” não poderiam ficar de fora, mas são re-encenados algo apressadamente, de modo que o espectador possa apenas pensar: “Isso de fato ocorreu, portanto, o filme é sério, confiável e verdadeiro” – jogando mais ainda a favor da imagem emocional de velhinha desamparada em que a férrea criatura se transformou.



Mas a velhice usada como álibi para o passado responsável das ações das pessoas é uma cafajestada melodramática pouco digna de um filme que se pretendesse sério. Cabe ainda assinalar que Thatcher não estava absolutamente perto de um político quando ele sofreu um atentado mortal... Por que então re-encenar tal episódio deste modo? Liberdades poéticas e recursos ficcionais precisam dizer a que vieram. No caso, é óbvia a intenção.



Por outro lado, no afã de tentar mostrar um retrato favorável da “têmpera forte” de seu objeto de atenção, o filme pode, sem querer, despertar uma impressão ridícula de Thatcher quando, algumas vezes, a vemos repetindo seus pontos de vista (parece um verdadeiro “samba de uma nota só”) quanto às responsabilidades individuais no destino de cada um devendo ser totalmente independentes do bem-estar social que os governos ofereceriam aos cidadãos, especialmente no caso dos menos favorecidos nas pirâmides sócio-econômicas. O reducionismo que o filme usa para transmitir o ideário neoliberal de Thatcher deixa dúvidas se ela mesma já não seria uma simplista – ou simplória – redutora de complexas questões sociais, tentando governar um país influente no mundo como se administra um pacato lar burguês de classe média estável dos anos 1950 ou ’60.

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