Será Eu Receberia as Piores Notícias de seus Lindos Lábios um filme religioso? Será um melodrama mexicano transplantado para a Amazônia do século 21? Seria ambas as coisas, mas filtradas pela secura da pena de Marçal Aquino e das lentes de Beto Brant e Renato Ciasca?
A partir daqui, este texto contém spoilers. Se você ainda não viu o filme, deixe para ler depois.
Lavínia, a personagem defendida com unhas e pélvis por Camila Pitanga, é uma pecadora com mais capacidade de regeneração que cauda de lagartixa. Dona de um passado traumático, ela é salva duas vezes durante o filme: primeiro, da sarjeta pela palavra do pastor sedutor e engajado; depois, da loucura pelo olhar apaixonado do fotógrafo individualista. O tema da redenção se estende de Lavínia (o corpo) aos eventos da comunidade onde se passa o filme (o espírito): o circo pagão de Xico Chagas se opõe ao circo místico-político do pastor Ernani.
Outros signos pararreligiosos, ou que relacionam o religioso com o profano, se espalham pelo filme. Cauby, o fotógrafo, cultua imagens de Lavínia expostas nas paredes de sua casa. A grande cena de exorcismo se assemelha, em seu paroxismo, às muitas de sexo, praticado sempre com muita sofreguidão e umidade corporal. A própria história é contada com uma estrutura de cruz: Lavínia é o eixo vertical, que atravessa toda a história, enquanto Ernani e Cauby cruzam sua vida com uma breve interseção, justamente (e literalmente) sobre ela. Se Lavínia é uma espécie de Madalena, a prostituta bíblica, quem é atingido pela primeira pedra é Cauby.
Talvez a gente possa encontrar ecos de religião em outros filmes de Beto Brant, um diretor comumente associado a um mundo de violência e corporalidade. Por exemplo, a expiação da culpa é central em Ação Entre Amigos e O Invasor. A salvação pelo anjo amoroso é uma possível chave de leitura para Cão sem Dono. E tem ainda o tratamento cômico do personagem Jó no seu primeiro curta, codirigido por Ralph Strelow.
Eu Receberia... é um melodrama de índole religiosa, embora os traços definidores desse gênero estejam camuflados por uma encenação que aponta sempre para o visceral e o sensual. Neste que considero o melhor resultado de sua parceria de direção com Ciasca, Brant recombina elementos de sua primeira fase, quando já trabalhava com roteiros de Aquino e produção de Ciasca – e de suas criações mais recentes. O argumento policial e a ação distanciada de centros urbanos, do início da carreira, vêm mesclados com o huis clos amoroso e uma relação íntima entre sexo e criação/fruição artística, predominantes em Crime Delicado, Cão sem Dono e O Amor Segundo B. Schianberg.
Dessa mélange vem uma força muito peculiar à obra do grupo. Uma força que, no novo filme, está melhor concentrada no triângulo central, enquanto se dispersa e afrouxa nas subtramas paralelas: o editor de jornal, que reedita o insuportável clichê da bicha erudita; o exotismo do velho palhaço e da cantora esotérica; e o discurso sobre a devastação da floresta amazônica. O espaço aberto, de maneira pouco suave, a esses ingredientes terciários rouba bastante da densidade do filme.