É admirável que, apesar da resistência do público americano e das prováveis imposições resultantes de sua associação com grandes estúdios (seus últimos filmes foram produzidos pela DreamWorks de Steven Spielberg), Woody Allen continue sagaz, irônico e divertido. Podemos notar uma certa fadiga, como deixam ver seus filmes mais recentes, entre eles O Escorpião de Jade e este Dirigindo no Escuro (Hollywood ending), mas nunca um esgotamento criativo capaz de macular a reputação de cronista da intelligentzia ou mesmo da mentalidade judaica americana.
O enredo de Dirigindo no Escuro pode ser interpretado como uma sátira aos bastidores da indústria do cinema americano. O espectador, portanto, deve relevar a fragilidade de determinadas situações em benefício da eficiência do faz-de-conta. E, ao colocar-se mais uma vez como protagonista dessa brincadeira com os ideais e artifícios da indústria do audiovisual, em relação à qual sempre se posicionou de forma antagônica, Allen só endossa com letras de traço forte a intenção de fazer diversão de maneira crítica.
Aqui, as relações entre o diretor/ator e seu alter ego na tela reforçam essa impressão. No filme, Allen empresta o físico mirrado e os cabelos brancos e ralos a Val Waxman, um cineasta veterano que já teve seus momentos de glória e que hoje ganha a vida dirigindo comerciais para a TV. Val é um típico neurótico/hipocondríaco da galeria de tipos criados pelo nova-iorquino. Tem fama de pessoa difícil, temperamental, o que só aumenta o seu isolamento profissional: quando a história começa, Val é demitido das filmagens de um comercial que está tentando rodar nos cafundós gelados do Canadá; ao mesmo tempo, descobre que Peter Bogdanovich conseguiu a direção do telefilme que cobiçava.
Enquanto isso, a ex-mulher de Val, Ellie (Tea Leoni), que hoje trabalha para o seu atual noivo, Hal (Treat Williams), um bem-sucedido produtor de Hollywood, consegue convencer o parceiro de que Val é o diretor ideal para assumir a direção de filme de época ambientado na Nova York dos anos 40, intitulado The City That Never Sleeps. Apesar das boas intenções de Ellie, que vê no projeto a chance de reabilitação do ex-marido, a idéia parece absurda. Inclusive para o espectador. Até porque Val aproveita todos os encontros profissionais com Ellie para cobrar-lhe as razões de tê-lo trocado por Hal, dez anos atrás.
O roteiro (também de Allen) se desenvolve numa progressão de situações que beiram o pastelão. Estas são alimentadas com divertidos diálogos sobre sexo, relacionamento amoroso e, claro, alfinetadas no sistema hollywoodiano de fazer cinema. O clima prepara o campo para a grande reviravolta da trama: sucumbindo ao peso da pressão emocional e profissional da tarefa, Val é vitimado por uma cegueira de fundo psicossomático. Ele, no entanto, é convencido a seguir em frente com o filme por Al Hack (Mark Rydell), seu agente. Este se compromete a ser seus olhos no set de filmagens.
Metáfora do maior dos medos que assombram os cineastas, a cegueira de Val avança a passos largos sobre a comédia rasgada quando Al é banido do set. Este é substituído em sua função pelo jovem que serve como intérprete entre Val e seu diretor de fotografia chinês (uma referência à recente colaboração entre Allen e Zaho Fei). Olhos perdidos no espaço, passos trôpegos, orientações desencontradas a técnicos e atores, Val parece um cego no meio de um tiroteio durante todo o processo de filmagem. Mas, para o bem da comédia do filme-dentro-do-filme e em torno deste, a farsa é mantida até o último dia de trabalho.
Por razões óbvias, o filme resultante não faz sentido algum. Mesmo depois da tentativa de salvá-lo na mesa de edição. The City That Never Sleeps é massacrado pela crítica e ignorado pelo público americanos. Mas, redenção das redenções, é recebido como obra-prima pelos críticos franceses, como normalmente acontece com os filmes de Allen do lado de cá da tela. Ao reforçar os paralelos entre o cineasta da ficção e o da vida real, o diretor personaliza e ao mesmo tempo valida suas observações sobre o faro comercial dos produtores americanos, a concepção de cinema de arte e até as impressões sobre a crítica especializada.
Apesar da promessa embutida no título original, Dirigindo no Escuro não oferece um final feliz genuinamente hollywoodiano, ou mesmo de um típico filme de autor. O tom de farsa, embora levemente assumido, tira dos ombros de Allen a obrigação de saciar ambas as expectativas. E a perfeita afinidade do elenco, da maior à menor contribuição, garante a homogeneidade humana desse espectro representado na tela. Tea Leoni fornece sofisticação, sensualidade e coração à executiva Ellie. Treat Williams consegue transmitir uma certa ironia como o produtor superficial e esperto. E até a bela Debra Messing (a estrela do seriado de TV Will & Grace) tem seus momentos de brilho em sua pequena participação como Lori, a anoréxica namorada de Val, atriz de segunda categoria que espera a chance de ganhar um papel no próximo filme do namorado.
DIRIGINDO NO ESCURO (HOLLYWOOD ENDING)
EUA, 2003
Direção e roteiro: WOODY ALLEN
Fotografia: WEDIGO VON SCHULTZENDORFF
Montagem: ALISA LEPSELTER
Desenho de produção: SANTO LOQUASTO
Direção de arte: TOM WARREN
Elenco: WOODY ALLEN, TEA LEONI, MARK RYDELL, DEBRA MESSING, TREAT WILLIAMS
Duração: 112 minutos
Site: http://www.dreamworks.com/hollywoodending