Críticas


VOCÊS AINDA NÃO VIRAM NADA

De: ALAIN RESNAIS
Com: MATHIEU AMALRIC, SABINE AZEMA, MICHEL PICCOLI, PIERRE ARDITI
25.04.2013
Por Marcelo Janot
O encontro da linguagem cinematográfica com a encenação teatral é um manancial de possibilidades de experimentação.

Aos 90 anos, Alain Resnais continua filmando. E o melhor: ao invés de ligar o piloto automático (o que seria até compreensível quando o desejo de filmar muitas vezes é maior que a energia disponível para tanto), prefere trilhar os rumos da invenção através de filmes ousados na forma e instigantes no conteúdo.

Ele continua convivendo com críticas que insistem em rotular seus filmes de "chatos". É um direito de qualquer um que se autodenomine crítico analisar uma obra sob o viés do grau de "chatice" que o filme lhe inflige. O sujeito deve ver o tempo passando, e como as coisas na tela não se sucedem da forma que ele imagina, sem que ele consiga decifrar os códigos propostos ou enxergar algo de significante, resta a inércia absoluta, como se estivesse por duas horas diante de uma tela em branco. Aí basta resumir a sinopse em algumas linhas e sacramentar:" é chato". E assim caminha a crítica de cinema.

Resnais dirigiu "Hiroshima Meu Amor" (1959)  e "O Ano Passado em Marienbad" (1961), dois filmes que, se lançados hoje, seriam apedrejados como "chatíssimos". Felizmente foram lançados há mais de cinco décadas, e por isso sobreviveram graças aos que ainda hoje os reconhecem como obras-primas. Ou seja: Resnais está habituado a ser tratado como um diretor de filmes "chatos", e, a julgar pelos quatro filmes que dirigiu desde a virada do milênio, provavelmente não só não se incomoda com isso, como continua mostrando que de chato seus filmes não têm nada. Do musical "Na Boca, Não" ao recém-lançado "Vocês Ainda Não Viram Nada", ele continua surpreendendo. E provavelmente continuará assim com "Amar, Beber e Cantar", atualmente em fase de pré-produção.

Portanto, quem enxergou "Vocês Ainda Não Viram Nada" como uma espécie de despedida talvez devesse buscar outro gancho. Temas como a memória e a morte sempre fizeram parte da obra do diretor, e o que ele faz aqui é celebrá-los mais uma vez, mas sem tom de despedida, e sim como uma ode à vida. Mistura teatro e cinema para imortalizar a arte em seus mais variados aspectos. Essa junção se dá em múltiplas camadas: os personagens têm os mesmos nomes dos atores, estão representando os atores que teriam encenado a peça "Eurídice" no passado e eles mesmos no presente, já que todos eles também participaram de filmes anteriores de Resnais. Confuso? Parece, mas não é.

Eles são convidados para uma leitura de testamento que se transforma numa espécie de jogo comandado pelos próprios: logo se vêem impelidos a contracenar ao mesmo tempo com o presente que se desenvolve na tela e o passado resgatado por suas memórias. Resnais joga também com o espectador, pontuando o início da narrativa com uma atmosfera de filme de suspense, enfatizada pela trilha sonora.

O encontro da linguagem cinematográfica com a encenação teatral é um manancial de possibilidades de experimentação: câmera subjetiva, longuíssimos planos sem cortes, split screen com dois Orfeus interpretando a mesma cenas mas de ângulos distintos, alternância de cenários, personagens que desaparecem subitamente no meio das cenas...tudo obedece a uma lógica de representação adequada à proposta.

O que mais seriam esses personagens/atores que não fantasmas assombrando esse castelo, reverenciando como se estivessem vivos o presente que se desenvolve na tela em sua frente, sem sucumbirem à passividade do mundo dos mortos, refazendo metaforicamente a trajetória de Orfeu em busca de sua Eurídice? Até mesmo após a cena final, quando os créditos rolam e Sinatra canta "It Was a Very Good Year", uma nova camada de significados é acrescentada ao filme. Como alguém consegue achar chato?

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