Críticas


O DESPUDOR DE "AMARELO MANGA"

16.09.2003
Por Valéria Geremia
O DESPUDOR DE AMARELO MANGA

Logo após assistir Amarelo Manga podemos, ainda sob “estado de choque”, rejeitá-lo completamente. Mas se apenas tentarmos pensar sobre o porquê das imagens e situações de “mau gosto” utilizadas pelo diretor, perceberemos que nada foi gratuito no filme. Cláudio Assis faz da câmera um instrumento abusivo, indiscreto, que explora os momentos de maior intimidade dos personagens e choca de fato. Confesso que não gostei do filme de início, mas quanto mais reflito sobre ele mais o percebo como um todo coerente, cujas partes estão a serviço de uma idéia definida. E, aos poucos, vou apreciando a engenhosidade do diretor em humanizar seus personagens enquanto questiona a função do pudor.



Quando Cláudio Assis, que aparece como um transeunte, sussurra ao ouvido da crente pudica: “O pudor é a forma mais inteligente da perversão”, ele está, na verdade, se dirigindo a cada um de nós. A personagem de Dira Paes é, assim, chave para a compreensão do filme. No início, a carne crua que ela prepara para a refeição lhe dá ânsias de vômito, mas quando descobre ter sido traída libera-se por completo sexualmente (não sem antes arrancar um pedaço da orelha da amante a dentadas!).



É claro que, falando sobre Amarelo Manga, não se pode deixar de mencionar a excelente fotografia de Walter Carvalho e a dobradinha inesquecível do açougueiro machão e o cozinheiro que se apaixona por ele (respectivamente Chico Dias e Mateus Nachtergaele). A sensualidade, as paixões, os sentimentos contraditórios humanizam as personagens. A fúria da crente que descobre ser traída pelo marido e perde todos pudores, a libido ativa da mulher gorda e doente, a paixão do cozinheiro gay pelo açougueiro machão, a noite de sexo intensa vivida pelo necrófilo com uma mulher viva (!), a tristeza que invade o coração do açougueiro pela perda do amor da esposa e, mais sutil, mas não menos intensa, a insatisfação da dona de bar. Amores secretos, prazeres indizíveis, dores diversas circulam entre os personagens, expressando sua humanidade sem a censura limitante do pudor.



As cenas documentais são usadas criteriosamente desde o início, na passagem dos carros pelas ruas de Recife, na hora da refeição e, por fim, no vendedor de mangas. A leveza de tais imagens retiradas do cotidiano funciona como cimento a unir as histórias narradas. O cuidado com a exposição do povo, aliás, contrapõe-se à brutalidade com que são exploradas as personagens ficcionais. No amálgama de ficção e realidade de Amarelo Manga, um sentimento muito humano destaca-se com a fúria de pinceladas de Van Gogh: a angústia de viver.



O filme se insere numa corrente que tem dado muito o que falar no cinema brasileiro: a troca entre o real e o ficcional que, quando feita com talento, enriquece os dois gêneros. Durante as filmagens no sertão de Central do Brasil, que nasceu de um documentário, Fernanda Montenegro foi requisitada a desempenhar o papel de “escrevinhadora” de cartas para moradores iletrados. Já Cidade de Deus, apesar de ser tão criticado, deu espaço à exibição do talento de jovens provenientes de favelas e interagiu com a comunidade carente, oficializando um cadastro de atores (Nós no Cinema).



E assim, ao superarmos a auto-censura do pudor, compreendemos também que o final em aberto de Amarelo Manga se harmoniza perfeitamente com o objetivo do filme, retratar uma camada da população, sem falsos escrúpulos morais, inserindo-a na categoria mais ampla da humanidade em geral. Como disse Cláudio Assis em entrevista concedida ao jornal cearense O Povo (12.05.2003), “... o filme foi feito em um dia e o povo continua.”...



VALÉRIA GEREMIA é graduada em Comunicação Social-Jornalismo pela UFRGS, concluiu curso de Dramaturgia no Dragão do Mar (Fortaleza-CE) e é Mestre em Letras pela UFC.

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