Críticas


UM TOQUE DE PECADO

De: JIA ZHANG-KE
Com: JIANG WU, ZHAO TAO, WANG BAOQIANG
30.12.2013
Por João de Oliveira
Mistura com bastante eficácia o drama, o documentário, o filme político e até o faroeste urbano

Alguns dos grandes teóricos marxistas contemporâneos afirmam que o comunismo e o marxismo nunca foram verdadeiramente aplicados. Para eles, os grandes países supostamente comunistas nunca ultrapassaram a etapa burguesa que definiu inicialmente o caráter de suas revoluções. Por trás da burocracia autoritária, dissimulava-se um capitalismo de Estado que era a negação da essência da revolução proletária.

Um Toque de Pecado, o novo filme do cineasta Jia Zhang-Ke, esforça-se para demonstrar que nem mesmo o dirigismo estatal existiria mais na China. Os bens de produção já não pertencem à coletividade, mas a empresários capitalistas pouco escrupulosos. Preocupados apenas com o lucro fácil, sem nenhuma preocupação com a condição social e humana dos trabalhadores, eles formam uma casta de privilegiados amplamente sustentada por uma classe politica totalmente corrompida.

Ao narrar a história de quatro personagens que vivem em quatro províncias chinesas diferentes, o cineasta apresenta, em quatro episódios, um retrato crítico e sem complacência da China contemporânea que denuncia algumas das principais mazelas sociais do país que em nada diferem daquelas comuns aos países capitalistas, sejam eles desenvolvidos ou subdesenvolvidos.

Não por acaso, vemos, logo após a tentativa mal sucedida de assalto que abre o filme, alguns planos rápidos que mostram um caminhão tombado no meio de uma estrada e, em meio a dezenas de caixas de tomates de um vermelho intenso derramadas no chão, o cadáver de uma pessoa, que se presume ser o motorista. Na China contemporânea, o vermelho teria perdido a sua conotação política para se transformar em símbolo da violência que grassaria no país.

Cada episódio chama a atenção para um ou mais tipos de problemas, os quais, diferentes apenas na aparência, revelam sempre a ausência e o silêncio do Estado, insinuam a sua conivência e revelam a sua inoperância e impotência. O primeiro deles denuncia a corrupção dos responsáveis políticos regionais e a sua falta de preocupação com os interesses dos trabalhadores. Corrompidos pelos ideais liberais e individualistas do capitalismo, esses líderes, detentores de carros importados enquanto os trabalhadores vivem na mais completa miséria, deixar-se-iam corromper pelos grandes grupos empresariais, representados como um grupo mafioso que não hesitaria em eliminar aqueles que se opusessem a seus interesses. Ao demonstrar indignação e manifestar seu repúdio por essa situação, Dahai, o cidadão um pouco mais esclarecido do vilarejo, é violentamente agredido pelos capangas do patrão criticado.

Dahai decide vingar-se, mas sua reação é um pouco ambígua ou, no mínimo, ambivalente. Assim, se por um lado sua atitude parece valorizada pela instância narrativa como uma forma de reação à inércia generalizada, por outro ela parece deslegitimada pelo roteiro que apresenta um personagem um tanto patético, perdido entre a margem e o centro, sem que saibamos realmente quem é ele. Desta forma, o significado social de sua revolta, que não é seguida pelo resto da pequena população local (robotizada pelos corruptos e paralisada pela carência de oportunidades), dilui-se, ganha ares de uma simples tentativa narcísica de dar um sentido a sua existência e transforma-se em vingança pessoal em consequência da humilhação sofrida ou ainda de algum sentimento recalcado em razão de um passado mal resolvido. Sua rebelião é representada como uma atitude individualizada e isolada e não como o fruto de uma vontade revolucionária, além do fato de que ela, como mostra o epílogo do filme, não muda o curso das coisas. Associado ao tigre, a sua vingança é transformada em uma simples caçada humana, semelhante àquela do personagem de Michael Douglas em Um Dia de Fúria (Falling Down, de Joel Schumacher).

O segundo episódio mostra a violência entre jovens que - sem emprego, mal remunerados ou em busca do dinheiro fácil - acabam optando pela delinquência. O personagem principal usa uma touca do Chicago Bulls, o que pode ser interpretado como exemplo de sua americanização (e, por extensão, da influência da América capitalista sobre a China supostamente comunista), mas também como sinônimo da violência e da desordem que o touro, animal ao qual o personagem está associado, simboliza na China.

O terceiro episódio mostra o poder de pequenos grupos locais que decidem fechar, súbita e arbitrariamente, uma rua para cobrar pedágios dos motoristas. O dinheiro adquirido é utilizado para pagar noitadas com prostitutas ou para tentar humilhar e corromper a moral de trabalhadoras decentes e honestas, o que denuncia o sexismo e o comportamento típico de alguns novos ricos que acham que o dinheiro pode comprar tudo. Uma vez mais, os malfeitores são surpreendidos pela reação por parte da vítima, cujo personagem é associado à serpente.

A última história, que constitui a crítica mais violenta do filme, surge quase como uma justificativa para a delinquência da segunda. Ela apresenta as dificuldades, a errância dos jovens em busca de emprego, as condições degradantes de certos trabalhos e as diversas formas de exploração das quais os jovens podem ser vítimas. A China de Jia Zhang-Ke é uma grande selva que se encontra totalmente gangrenada pela miséria social, pela violência e pela corrupção sem que o Estado demonstre interesse na resolução desses problemas.

Enquanto a escolha de quatro localidades distintas permite a nacionalização e a generalização dos problemas sociais apontados pelo filme, as quatro histórias apresentadas, quase todas inspiradas em fatos reais, mostram com um certo realismo personagens que, desamparados pelo Estado, decidem agir e reagir, de forma violenta, contra a corrupção, a desigualdade social, a violência, o sexismo e a exploração social. Todavia, se a instância narrativa possui uma postura politicamente maniqueísta, ela abstém-se de qualquer julgamento moral em relação às atitudes dos personagens. Mesmo que o filme pareça sugerir que, para sobreviver à brutalização imposta de cima, é necessário, muitas vezes, que o homem se animalize e lute com suas próprias armas, não há apologias nem críticas dos tipos de reação apresentados, mas simples análises de casos nos quais certas pessoas, certas ou erradas, decidiram agir. Nesse sentido, por mais que o filme seja extremamente simbólico (cada personagem é associado a um animal), não é possível vê-lo como um grito para que todos os explorados do mundo inteiro passem à ação e renunciem à pusilanimidade que não lhes traz nenhum benefício, mas como um grito de alerta sobre a situação de desespero e de desamparo na qual se encontrariam os chineses menos favorecidos.

O belo plano final do filme lembra, por razões opostas, o belo quadro de Giuseppe Pellizza da Volpedo, Il Quarto Stato, que aparece durante os créditos do filme 1900 (Novecento), de Bernardo Bertolucci). Mesmo que os dois representem grupos de explorados pelo sistema, na pintura temos a representação da caminhada de um grupo de operários em greve (lutando por melhores condições de vida), enquanto no filme temos uma massa inanimada, estática, homogeneizada e sem identidade que contempla absorta (alienada?) o espetáculo teatral. Além disso, em 1900 o quadro, colocado no início, funciona como uma antecipação da luta do proletariado italiano contra os fascistas que veremos representada no filme, e em Um Toque de Pecado a cena representaria a permanência da condição de explorado do povo.

Com uma direção segura e uma forma simples e sem floreios desnecessários, Um Toque de Pecado é um excelente filme que mistura com bastante eficácia o drama, o documentário, o filme político e até o faroeste urbano.

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