Críticas


MOSTRA DE SP: S21… KHMER VERMELHO

De: RITHY PANH
17.10.2003
Por Carlos Alberto Mattos
A DOR EM PALAVRAS

O que fez de Shoah, de Claude Lanzman, um clássico do documentário não foi o tema do Holocausto, sobejamente esquadrinhado pelo cinema e as atualidades, mas a atitude do cineasta de evitar toda imagem de arquivo, qualquer ilustração. O horror era descrito somente pelas memórias de vítimas, algozes e testemunhas, muitas vezes nos locais onde tudo acontecera. As palavras ecoavam nos cenários agora vazios ou transformados, mas impregnados das emoções da História. A lembrança de Shoah chega inevitavelmente diante de S21 – A Máquina de Morte do Khmer Vermelho, o impactante documentário que relata horrores da perseguição política no Camboja durante o regime liderado por Pol Pot.



Entre 1975 e 1979, um genocídio ceifou a vida de aproximadamente 1,7 milhão de cambojanos, numa corrente de denúncias e acusações em nome da pureza de uma revolução. Hoje cada cidadão com mais de 30 anos tem uma história dilacerante para contar envolvendo seus familiares. O cineasta Rithy Panh é um deles. Aos 11 anos de idade, viu seus pais e irmãs serem mortos pela polícia política e foi enviado a um campo de reeducação no interior. Findo o regime, ele transferiu-se para a França, onde estudou cinema. S21 é mais um capítulo no seu acerto de contas com um tempo de morte.



Rithy Panh usa poucas imagens de arquivo, e somente na abertura do filme. No mais, limita-se a ouvir alguns protagonistas da tragédia. Seu dispositivo amplia o alcance de Shoah por não confrontar vítimas e algozes apenas através da montagem. Em vez disso, ele os reúne fisicamente no prédio onde cerca de 17 mil pessoas foram torturadas e pereceram, num subúrbio de Phnom Penh. Dois ex-prisioneiros conversam com carcereiros, torturadores, interrogadores, um médico e auxiliares da sinistra unidade S21, enquanto revisitam celas, antigas câmaras de tortura e comentam documentos e fotografias da época. As telas do pintor Vann Nath, um dos ex-prisioneiros, ajudam a detalhar os suplícios e as condições de vida na prisão. Juntos num mesmo espaço carregado de recordações comuns e contraditórias, torturados e torturadores se lançam a um diálogo no limite do impossível, mas que resulta numa forma compartilhada de memória.



Chama atenção a presença ou ausência de emoções explícitas nos relatos. Enquanto um velho camponês, diante da simples visão dos pavilhões do S21, chora convulsivamente a perda de toda a família, os antigos carrascos relatam sem qualquer dramaticidade aparente os cruéis rituais de tortura, as mortes sumárias que perpetravam – e a forma como se acostumavam até com o odor dos cadáveres. Alguns dispõem-se mesmo a reencenar a vigilância das celas, as palavras de ordem etc. Com isso, o filme consegue somar a evocação gestual à verbal, ao mesmo tempo em que informa sobre o processo de desumanização por que passavam os soldados de Pol Pot.



Um dos momentos mais fortes do filme vem logo no início, quando a família de um ex-torturador o instiga a contar “toda a verdade” para afastar o carma negativo. Depois de muitos anos de silêncio e medo, acrescidos da natural humildade do povo cambojano, a oportunidade de falar surge como um exorcismo contra os demônios da História. Desde 1989, Rithy Panh já fez oito filmes sobre o assunto. Com S21, colocou um marco no documentário político contemporâneo.



# S21 – A MÁQUINA DE MORTE DO KHMER VERMELHO (S21, La Machine de Mort du Khmère Rouge)

Camboja/França, 2003

Direção: RITHY PANH

Duração: 101 minutos



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