A controvérsia em torno de Dogville é menor que o filme. Mais do que uma crítica à sociedade e à cultura americanas, Lars Von Trier faz uma fábula que diz respeito à própria natureza humana. É claro que a América da Grande Depressão proporciona os ingredientes ideais para esse empreendimento, porque ali se radicalizaram de forma hiperbólica distorções de valores morais e sociais, mas o alvo do raivoso cineasta dinamarquês não tem fronteiras: é o espírito burguês e hipócrita, que massacra, explora e desumaniza o indivíduo, não importa onde.
O indivíduo em questão é Grace, que, fugindo de um grupo de gangsters, é acolhida pela pequena comunidade rural de Dogville. A reticência inicial é substituída pelo impulso de tirar partido da situação. Bondade, solidariedade e generosidade se revelam a face visível e enganosa de uma perversão coletiva, diante da qual Grace é uma vítima impotente. E quanto mais vulnerável ela se mostra, mais os habitantes da cidade mostram os dentes, até que esse processo de escravização (inclusive sexual) atinge dimensões inimagináveis, como se Grace (o nome é sugestivo) estivesse sendo oferecida em sacrifício a uma divindade maligna: o espírito protestante do capitalismo.
Os elementos teatrais, começando pelos cenários riscados no chão, criam um efeito de artificialidade que a divisão da narrativa em capítulos e até mesmo o estilo da interpretação acentuam. A intenção fabular é evidente. É como se Lars Von Trier combinasse a Ópera dos Três Vinténs de Brecht com Nossa Cidade de Thornton Wilder, para mostrar o avesso das relações sociais. É claro que o diretor alimenta a polêmica em torno do anti-americanismo, por exemplo ao encerrar o filme com um seqüência de fotografias sobre a dureza da Depressão, ao som de David Bowie. O próprio diretor demonstrou seu gosto pela provocação no último Festival de Cannes, ao sugerir que a decisão de filmar nos Estados Unidos foi uma reação às críticas negativas dos americanos a Dançando no Escuro.
Apesar de todos os seus méritos, Dogville não tem o mesmo impacto de Europa, Ondas do Destino ou Dançando no Escuro. Talvez porque seja um filme de uma personagem só - brilhantemente interpretada por Nicole Kidman, diga-se de passagem. Todos os demais personagens carecem de consistência psicológica, funcionando mais como engrenagens impessoais do massacre de Grace, e por conta disso informações importantes da história têm que ser transmitidas pela narração em off de John Hurt.
Também falta um pouco de credibilidade, mesmo em se tratando de um registro simbólico, à reviravolta final da protagonista, que soa mais como uma provocação para empolgar ou irritar a platéia. De qualquer forma, Dogville confirma Lars Von Trier como um dos cineastas mais perturbadores em atividade, e um dos pouco capazes de reunir um elenco estelar para rodar um filme de três horas sobre a culpa, a vingança e a hipocrisia moral, com uma mensagem nada edificante, aliás já presente em seus longas anteriores: o ser humano é capaz de tudo.
#DOGVILLE (Dogville)
Dinamarca, 2003
Direção e roteiro: LARS VON TRIER
Elenco: NICOLE KIDMAN, PAUL BETTANY, LAUREN BACALL, JAMES CAAN, BEN GAZZARA, JEREMY DAVIES
Duração: 177 min.