Críticas


“NOÉ”, A HISTÓRIA DE UM OBSESSIVO

De: DARREN ARONOFSKY
Com: RUSSEL CROWE, JENNIFER CONNOLY, EMMA WATSON
13.04.2014
Por Gabriel Papaléo
Aronofsky relaciona os dilemas do personagem bíblico com questões atuais

A busca obcecada por sentido na vida é tema recorrente do cinema de Darren Aronofsky. Desde o matemático de Pi até a bailarina de Cisne Negro, a obsessão move os protagonistas de seus filmes até situações nas quais o Homem perde o controle sobre os fatos – seja para despencar no fundo do poço (em Réquiem para um Sonho), seja para alcançar o sublime (em Fonte da Vida, O Lutador). É o desenvolvimento cuidadoso da jornada psicológica dos personagens que justamente tem força nos filmes do diretor – e não por acaso, os atores que protagonizam os filmes de Aronofsky costumam chamar atenção pelas atuações. No entanto, a temática sempre era desenvolvida em tramas com menor escala; a riqueza do debate vinha mais do psicológico que do físico.

Em Noé, o diretor americano, que já passeava por gêneros distintos, se aventura no épico e, consequentemente, aumenta o escopo de suas reflexões. Inspirado pela história bíblica, Aronofsky debate a motivação dos personagens do livro e reinterpreta o cânone religioso para desconstruí-lo à sua maneira. A surpresa aqui é que o diretor não se restringiu apenas às ambições filosóficas e deu ao filme uma poderosa sensação de grandiosidade que não só aparece nos feitos dos “heróis”, mas também nas ideias que os motivam.

O cineasta contextualiza sutilmente o espectador numa época que mais soa como uma Terra alternativa. Na ambientação, Aronofsky aproxima os dilemas dali com questões atuais – o que é constante na narrativa. Logo no prólogo, xenofobia e exploração territorial por matéria-prima se encontram: o ainda jovem rei Tubal-Cain invade o território do pai de Noé visando riquezas debaixo da terra dali – uma espécie de ouro –, e ainda deixa claro o asco pela linhagem do rival. A atualização, portanto, vai além da estrutura do roteiro; está na discussão e nas ações dos personagens.

Para conciliar os simbolismos e metáforas com a jornada do herói com coesão, o questionamento da escolha de Noé como salvador das espécies é aproveitado desde o princípio. Ambientalista nato, um biólogo vegetariano que luta pela dignidade da fauna e preservação da flora, o protagonista passa o primeiro ato sobrevivendo naquele ambiente e ensinando os filhos a respeitar a Natureza quase como ofício. Não é à toa que a cena mais forte da projeção é a morte de um animal dado aos famintos (e comido vivo). É o tipo de choque emocional, ressaltado pelo excelente design de som, que predomina durante a trama. Sente-se mais pela angústia da inevitabilidade da morte – sejam os humanos fora da arca (a impactante cena do pisoteamento), sejam os animais massacrados para alimentação – que pelas cenas colossais de luta envolvendo os anjos – e não poderia haver melhor elogio para o arco dramático. Ao observar essa violência dos outros humanos contra os animais, e contra seus pares de espécie, Noé desenvolve o pensamento antagonista que o tornará um homem irredutível a partir do Dilúvio.

A mudança comportamental do personagem não soa gradual dali em diante, muito em virtude da opção de Aronofsky e o co-roteirista Ari Handel em dividir a narrativa em quatro atos bem distintos, mas cabe perfeitamente na proposta alegórica que forma o filme desde a introdução. Os conflitos familiares presentes na Arca se fazem sentir em tela, seja na expressão de Emma Watson, seja na determinação da sempre competente Jennifer Connelly, e ganham peso com as discussões que o filme arrisca abordar. Não se tornam apenas dilemas da família de Noé; são de toda uma espécie, ao longo dos séculos.

A palavra do Criador – figura ativa no filme, aliás – aprisiona Noé dentro das responsabilidades que lhe foram designadas. O dever se torna questão quando o protagonista percebe, após constantes conflitos com a família, que está dando as costas para a própria espécie. A postura truculenta de Russell Crowe, uma ótima escolha para o papel, ajuda a compor o sentimento de culpa do personagem diante da situação. A busca de Noé, então, se revela tão física quanto metafísica: o protagonista procura sobreviver a uma enchente colossal, e procura por sentido nas ações encomendadas pelo Criador.

Nesse momento de dúvida para Noé, Aronofsky aprofunda a alegoria, explorando o que torna o ser humano racional, não animal – e aproveita os arquétipos construídos para representar as diferentes faces da humanidade.

Tubal-Cain surge como o mal no Homem, e o espírito de progresso do personagem denuncia sua sede de poder corrosiva; Noé representa a palavra do Criador, implacável e violenta, que retrata um homem totalmente consumido por seu ideal; o filho Ham, que até então só sofria com a insatisfação de não ter par feminino para a Arca, aparece como a bondade no Homem. Sem moralismo exacerbado (uma crítica corrente que se faz ao cinema do diretor, na maioria das vezes infundada), a discussão é crucial para a transformação do protagonista e revela a ambiciosa reflexão do cineasta acerca do tema: é sobre a condição do humano como ser pensante, munido de um código de ética que desenvolvemos até hoje, que a batalha final de Noé se trata. Através de planos gêmeos, como a brilhante inserção de soldados no lugar de Caim, Aronofsky associa todo um histórico de combate humano com conflitos bíblicos – uma decisão extremamente racional, curiosamente em um épico supostamente religioso.

Além da semelhança na discussão acerca do Homem, a delicadeza do diretor na escolha de planos nas cenas mais simbólicas, como a invasão na chuva, remete ao subestimado Fonte da Vida. Aronofsky usa de um sofisticado stop-motion para ilustrar a Criação, naquela que é a melhor cena do filme, fundindo Criacionismo com Evolucionismo para igualar os papeis da Natureza e do ser humano na interpretação do início de tudo. O Homem tem livre arbítrio na existência, e cabe a ele mesmo dar sentido a ela.

A ambição das discussões do filme, porém, não esquece a escala gigantesca do viés apocalíptico da história, o senso espetaculoso da trama. A espada de fogo que dizima um mar de inimigos é estilosa. O surgimento da Arca, ainda maior, é espetacular: após a água brotar do chão, criar uma floresta ao redor e se espalhar pelo mundo pelo stop-motion high-tec, um plano aéreo revela toda a dimensão assustadora da fortaleza. É uma catarse diferente dos embates psicológicos corriqueiros nos projetos do cineasta.

Toda a direção de arte de Mark Friedberg e a fotografia do excelente Matthew Libatique ajudam a compor o universo particular de Aronofsky. O abandono, cheio de largos espaços desabitados e inóspitos, lembra a atmosfera do Stalker de Tarkovsky; já os esqueletos pendurados próximos a estruturas arcaicas de habitação são muito Planeta dos Macacos. Alguns elementos fantasiosos, como os interessantes anjos de seis braços e a pele mágica de cobra, remetem mais a Senhor dos Anéis que a própria Bíblia em si. E os enquadramentos arrojados de Aronofsky, embalados pela hipnótica trilha de Clint Mansell, dão uma escala absurda para os fatos, que se iguala apenas aos efeitos da ILM na inundação e na entrada dos animais na arca.

Desde Pi, Aronofsky tenta entender a entidade divina em que muitos creem. Em Noé, como o Criador poderia muito bem ser a própria Natureza em forma de organismo único, o diretor constrói uma história em que o valor da coexistência na Terra provoca ideias sobre a própria condição humana como senhores de nossas escolhas.

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