Críticas


SOB A PELE

De: JONATHAN GLAZER
Com: SCARLETT JOHANSSON
16.05.2014
Por Gabriel Papaléo
A conquista do gênero, a desconstrução da espécie.

A estranheza com o desconhecido - e a eventual curiosidade que isso provoca - são fatores que se associam diretamente à descoberta de vida alienígena na arte. Sejam tratados como inimigos ou aliados, os extraterrestres não se popularizaram no cinema à toa: diante de uma nova espécie, mais avançada do que a humana, abrem-se discussões sobre nossa própria natureza. E com Sob a Pele, novo filme de Jonathan Glazer, após dez anos do lançamento de seu último filme, não é diferente.

Encontrar uma ótica diferente para trabalhar o assunto é uma tarefa que o diretor inglês está habituado a fazer. Após uma carreira em videoclipes conceituais e em comerciais que apuraram o estilo elegante de filmar, Glazer aperfeiçoou a predileção por atmosferas densas como meio de contar suas histórias na tela. Sob a Pele já dá esse tom de narrativa no início, com um prólogo experimental que forma, lentamente, o corpo que a alienígena vivida por Scarlett Johansson ocupará na história. O sentimento de urgência, de pânico do desconhecido, é construído com precisão nesses minutos iniciais que utilizam imagens fortes para jogar o espectador em um estado de medo – absolutamente necessário para a proposta de atmosfera fílmica de horror.

Não por acaso, a narrativa tende mais a sugerir do que esclarecer. A protagonista logo se veste com um suéter rosa, humanizada, para pontuar uma transição de humor; quando some, nunca fica explícito que alguém a procura, mas isso é sugerido pela rota de várias motos. Glazer e o fotógrafo Daniel Landin usam enquadramentos estáticos, evocativos, para criar esse sentimento constante de terror – e a paisagem ameaçadora da Escócia faz o resto –, resultando numa narrativa que se move como fluxo de consciência mais pelo senso de desconhecido perante a protagonista que por razões estilísticas. O arrojo com que a opressão dos contrastes de-saturados e a iluminação cuidadosa envolvem Scarlett Johansson durante o filme é talvez o que o filme tem de melhor a oferecer em visual.

E nos dois primeiros atos, Glazer e o co-roteirista Walter Campbell se concentram no comportamento da protagonista na Terra - antes do sexo entrar na equação. Logo que adentra pela primeira vez em um shopping, a alienígena é filmada em um primeiro plano de suas costas, como se estivesse experimentando de fato o encontro social – e é de primeiros momentos como esse que o desenvolvimento da personagem avança. A “mulher” cerca seus alvos aos poucos, transmitindo uma falsa casualidade ao perguntar sobre o estado civil (ou uma possível solidão) dos homens, o que revela o procedimento calculado da protagonista de forma sutil; vê um programa de humor com curiosidade, e estranha tanto a música quanto a culinária; observa seu corpo nu no espelho, se toca, sente cada parte do corpo – e o diretor a filma com uma sensualidade notável justamente porque sabe diferenciar do sexo como arma da alienígena, o sexo como descoberta (não é por acaso que aparecem mais os braços e lábios de Scarlett que seus seios); mesmo leves quedas, ou o sangue alheio no envelope de uma rosa que lhe foi entregue são motivos de reflexão para a protagonista porque tudo é contato com o desconhecido.

Já que todo contato é um aprendizado, Glazer evita mostrar o sexo como ferramenta de destruição para não saturar tal recurso até o clímax, e cria uma situação metafórica para retratar a captura dos homens. Aos poucos, de vítima a vítima, a alienígena vai se aprimorando e utilizando mais recursos para a empreitada – algo que é perfeitamente representado pela maneira com que Scarlett tira uma peça de roupa a mais a cada “assassinato”. Essas sequências remetem diretamente ao experimentalismo do prólogo, com simbolismos poderosos que tornam a violência gráfica mais grotesca do que o normal. O perigo daquele mundo é majoritariamente simbólico – e isso inclui o que está sob a pele dos homens afogados.

A comunhão da “mulher” com a raça humana, passado o seu “trabalho”, chega perto de um fim de ciclo quando o Ambiente chega para selar a relação. Os belíssimos planos de Scarlett deitada na neve, fundida com a floresta, são uma solução pouco sutil, mas inegavelmente eficiente. A grande sacada de Glazer e Campbell, porém, é aprofundar o escopo do que é “ser” na espécie: diante do contato, a alienígena não só conhece o Humano como um todo: conhece a Mulher. A partir do momento que a protagonista presencia duas mortes ao acaso, começa a perceber os dilemas do machismo na sociedade. O bebê sozinho chora, como se fosse um clamor por maternidade - que a oprime quase inconscientemente; o tratamento com que a maioria dos homens chega até ela é de posse; seu parceiro de trabalho a encara com olhos julgadores em uma rua escura, desconfortável. É como se Glazer colocasse uma visão extraterrena para sofrer as agruras do Feminino para realçar o poder - e o direito - da mulher em ser ela mesma. Uma desconstrução da nossa espécie para evidenciar a conquista do gênero.

Obviamente, a ambição pode se confundir com pretensão, e a narrativa de Glazer perigava se julgar mais complexa do que imagina. Por mais audaciosa que seja a abordagem visual criada por Landin e pelo diretor, ela é eficiente principalmente dentro da lógica interna da história - que se mostra mais convencional, sem grandes revelações - do que aparentava pelo prólogo. A súbita mudança de tom no terceiro ato, voltado às sensações de um contato simbólico de espécies, causa um desconforto que trunca o ritmo da narrativa: tudo o que não se espera de um projeto que em sua maioria soa tão estilizado. Porém, mesmo que deixe claras as falhas do filme, a mudança abrupta é eficaz em transmitir o sentimento de sua protagonista. Toda a contemplação das paisagens e interações de Scarlett com os humanos em momento algum abandona o arco moral do personagem, como toda boa ficção-científica que discuta a questão humana, e só isso já bastaria para uma leitura positiva.

Sob a Pele ganha força, portanto, quando assume sua roupagem sci-fi filosófica para adentrar em questões mais profundas sem que tenha que abandonar a estrutura do gênero. Entre as falhas estruturais pontuais, a reflexão é transmitida com vivacidade na narrativa, mesmo imperfeita. Há certo frescor na forma com que Glazer passa sua linha de pensamento (o filme é bem menos abstrato que aparenta), o que denota a segurança do cineasta em se manter fiel à sua personagem e ao arco da mesma em sofrer as consequências de um mundo tão sensual quanto hostil. A descoberta do mundo pelo toque, pela sensação e pelo sexo, é o que move Sob a Pele desde o seu início – e seu mérito é não subutilizar suas perguntas, mantendo o foco para questiona-las de maneira interessante, sem necessariamente responde-las.

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