Buscar um fator novo em uma premissa saturada que justifique contar uma história pode ser complicado. É preciso visão e certo arrojo para fazer do comum algo diferente. No Limite do Amanhã, novo filme de Doug Liman, é um exemplo disso: não só parte da consagração do subgênero de invasão alienígena como serve de veículo para Tom Cruise.
Liman especializou-se em dar roupagem diferenciada para seus blockbusters de estúdio. A Identidade Bourne (2002) é filme de espionagem com reviravoltas e perseguições clássicas que não abandona o realismo. Com Go (1999) e Jogos de Poder (2010), a câmera versátil se adaptava a material menos grandioso. Neste novo filme Liman aposta na agilidade da narrativa e na fotografia inquieta para conceber uma construção de herói moldada por interferências temporais que se acumulam no tempo - não no espaço - para brincar com as expectativas do cinemão-pipoca fanático por guerra.
A desconstrução da expectativa já tem início nos créditos iniciais: notícias em tela, depoimentos expositivos e contextualização de uma guerra de anos são alguns dos recursos que o roteiro de Christopher McQuarrie, Jez e John-Henry Butterworth utilizam no prólogo, algo quase protocolar em filmes do gênero. A questão se torna interessante quando o tom do texto, meio satírico, explicita certo cinismo sobre o próprio mundo que retrata: é um filme sobre repetição que se inicia com repetições dos cacoetes que mais funcionam no gênero. Diretor e roteiristas ensaiam uma maneira perspicaz de lidar com os clichês dos gêneros que tateiam, o que vai trafegar por todo o filme.
Após uma carreira recente de heróis de ação quase indestrutíveis, ver Tom Cruise como soldado inexperiente não deixa de ser uma forma de sátira. O visor quebrado de Bill Cage na queda do avião, a fala nervosa e o desconforto diante do general (uma ótima sacada, o publicitário que, acostumado a vender ideias, parece não entender o conceito de uma ordem de ida para a guerra) são exemplos da habilmente apresentada fragilidade do personagem. Ao retirar a aura super-heroica da persona de Cruise no imaginário popular, Liman e os roteiristas se libertam para construir uma intensa jornada de herói, em que a curva de aprendizado é fundamental tanto para construir a identificação com o protagonista, como para resolver a própria trama em si - o que depende do aprimoramento físico e mental de Bill Cage.
No combate, o desenvolvimento de Cage é gradual, notável a cada pequeno ganho em relação à estratégia anterior. O que torna o pano de fundo intrigante, ademais, são as pequenas histórias e mistérios que Liman encaixa no meio da pancadaria. Cada nova informação soa importante, assim como cada variação de um fato (os diferentes destinos do personagem esmagado pelo avião). No entanto, tratando-se de um teste de resistência para o protagonista no qual a repetição é constante, No Limite do Amanhã corria o risco de se tornar tão enfadonho quanto projetos similares [Ponto de Vista (2008) e O Vidente (2007)]. É aí que o trabalho espetacular da montagem de James Herbert traduz perfeitamente a narrativa de Liman e dos roteiristas em um ritmo coeso, audacioso, entendendo que um filme que trata de um tempo dilatado não precisa obedecer a cronologias clássicas.
Assim, novas informações descobertas são mostradas à medida que o pensamento do personagem de Cruise vai se desenvolvendo, sem corresponder necessariamente à linearidade da visão do soldado. A cena das flexões, por exemplo, só é revelada após Bill Cage tê-la vivido algumas vezes. A montagem esconde muito bem as elipses para ilustrar a atenção do protagonista para com os novos detalhes, evitando assim a previsibilidade e, vejam só, a repetição do projeto.
Liman também ajuda com cuidadosa lógica visual criada com o ótimo fotógrafo Dion Beebe, usando match cuts (planos gêmeos) e travellings grandiosos (a primeira queda de Cage no Dia D é estonteante), que dão agilidade ao ritmo enquanto prosseguem com a trama, procurando ainda pequenas histórias dentro do próprio combate.
A carpintaria dramática da construção do protagonista, vital para o filme, chama atenção por não deter o enredo em momento algum pretendendo torná-lo tridimensional com os recursos previsíveis de sempre: nenhum flashback ou problema no passado de Cage é usado para tratar do personagem; é na ação que o herói se faz valer e sentir. Até mesmo o romance arquetípico com a personagem de Emily Blunt é bem arquitetado, já que a jornada da heroína se torna tão interessante quanto à de Cage – e o dilema na cena na casa abandonada é sentido com facilidade. Herança evidente de um filme de premissa semelhante, o clássico Feitiço do Tempo: o personagem viveu tudo tantas vezes que chega a um novo patamar de entendimento.
É também evidente a semelhança da premissa do filme com a lógica dos videogames. A morte do protagonista que visa aprender para “passar de fase” é a mesma dos games. Liman aproveita e contextualiza a ação com planos gerais que revelam pontos de cobertura, alvos e uma geografia bem delimitada, similar aos jogos. O diretor vai além da referência, porém, ao construir sequências de ação com energia que não se assemelha ao caos visual de ações esvaziadas de jogos como Call of Dutys encontrados no mercado. A câmera se coloca sempre no meio da guerra como observadora do protagonista e de Rita (personagem de Blunt), o que dá lastro emocional necessário para avançar com o caminho dos heróis.
A ambientação na Europa, rara nos blockbusters atuais, é cenário preciso para o nível mais profundo de discussão que o filme busca. A repetição dos acontecimentos com Cage não se dá apenas por seu poder diferenciado. Os personagens de No Limite do Amanhã são reféns também da repetição de acontecimentos trágicos, o que sempre aconteceu na história da humanidade – como a guerra. A invasão à Normandia é a referência mais clara, além das contínuas derrotas dos humanos contra os invasores que remetem às dezenas de exércitos fracassados na Historia – os próprios Aliados, na Segunda Guerra, viraram o jogo justamente na Normandia. Porém, o ciclo implacável dos eventos também atinge os personagens. Rita, excelente personagem vivida por Emily Blunt com o talento e beleza habituais, protagonista feminina forte e talentosa, sofreu com a morte de um companheiro da mesma forma que Cage é obrigado a vê-la morrer dezenas de vezes para obter êxito na missão. É um movimento rebuscado da narrativa, que serve como mais uma prova do olhar crítico dos realizadores.
Trata-se de um filme com inegável valor pop, com tantos exoesqueletos e bastões especiais quanto no também pop Elysium, mas que não se priva de estilizar a linguagem para explorar com total entrega seus temas – o que o filme de Blomkamp (e muitos blockbusters atuais) não fazem. Tom Cruise e Doug Liman não são conhecidos por tratar com descaso seus projetos, e aqui o nível de discussão e ambição na linguagem nunca deixa de surpreender. No meio de seus grandes feitos e explosões diversas, No Limite do Amanhã não só se revela um divertidíssimo filme de ação como arrisca rumos diferentes na narrativa para contar sobre que seus protagonistas sofrem ao confrontar o peso do ciclo da História.