Críticas


GLAUBER – O FILME, LABIRINTO DO BRASIL

De: SILVIO TENDLER
07.03.2004
Por Carlos Alberto Mattos
VIDA DEPOIS DA MORTE

Maior mito do cinema brasileiro, Glauber Rocha é um tema praticamente inesgotável. Há os que vivem dele – filhos naturais, ideológicos ou culturais, ex-companheiros, exegetas etc –, assim como a memória dele vive desses repercutidores fiéis. É um curioso ciclo metafísico, em que o ídolo morto fecunda a vida dos vivos, enquanto é continuamente alimentado pelo seu culto.



O filme de Silvio Tendler pode ser incluído nessa corrente, embora tenha méritos que ultrapassam o mero panegírico. Nasceu de um acontecimento quase fortuito, a filmagem do enterro de Glauber, em agosto de 1981, por uma pequena equipe comandada por Tendler. A história é bastante conhecida: Lúcia Rocha, mãe de Glauber, não permitiu que as imagens do filho morto fossem divulgadas. O veto durou pouco mais de 20 anos. Quando foi suspenso, Silvio Tendler já tinha distanciamento suficiente para usar o material no contexto de uma análise mais abrangente do papel de Glauber Rocha na cultura brasileira.



As cenas do velório e do sepultamento, cerne dramático do filme, têm inspirado paralelos com Di, o curta genial e anárquico de Glauber sobre a morte de Di Cavalcanti, até hoje vetado na Justiça pela filha do pintor. Mas as semelhanças não vão além do nível factual. Enquanto Di é uma celebração quase indígena do derradeiro rito de passagem de um artista, grito irreverente contra o rigor mortis, Glauber, O Filme – Labirinto do Brasil trabalha no registro da comoção. Sublinha com música compungida imagens por si só excruciantes, como rostos chorosos, a mater dolorosa e o pronunciamento emocionado de Darcy Ribeiro.



Seria um despropósito cobrar conexões entre o filme de Tendler e o cinema de Glauber. Não se trata de uma obra afiliada como Rocha que Voa, de Eryk Rocha, mas o produto de escola bem diferente. Tendler é um racionalista clássico, preocupado com a comunicação básica do documentário enquanto espetáculo cinematográfico. Glauber, o Filme é por natureza um documentário convencional, que avança por blocos bem caracterizados e depende mais da qualidade intrínseca dos depoimentos e materiais reunidos do que da estrutura criativa formada a partir deles.



A idéia do labirinto, concretizada graficamente de maneira infeliz numa espécie de túnel de textos, é porém perfeita para expressar a complexidade da figura de Glauber. Ao mesmo tempo, funciona como uma rendição diante das dificuldades em se conciliar as imensas contradições e os intrincados critérios que nortearam a vida e a obra do cineasta. Labirinto é o tipo do termo que dispensa definições unívocas e admite todas as possibilidades.



O filme faz uma revisão sintética e relativamente superficial da obra, com destaque para o raro making of do curta A Cruz na Praça, controvertido exercício de ficção homossexual do início da carreira. Mas o foco principal está na atuação de Glauber como agitador cultural e na dimensão humana do seu comportamento.



Fatos e atitudes sabidos a boca pequena, mas costumeiramente negados ou escamoteados por familiares, chegam agora à luz do conhecimento público: Glauber consumia drogas, editava filmes sem uma peça de roupa sobre o corpo, fazia da transgressão de costumes uma via para amalgamar arte e vida num só delírio. O cineasta Fernando Birri testemunha que o público do Festival de Veneza esvaziou a sala onde se exibia A Idade da Terra. Arnaldo Jabor admite que a tese do assassinato cultural, defendida à época da morte de Glauber, não passava de “paranóia corporativista” típica da época. Curiosamente, a paranóia ainda parece atingir Silvio Tendler, quando ele informa num letreiro que os sons da filmagem do velório no Parque Laje desapareceram por alguma sabotagem, mas não oferece qualquer prova ou indício concreto.



De qualquer modo, o conjunto de informações relevantes e a simpatia que emana desse personagem examinado sob tantos ângulos diferentes faz de Glauber, o Filme um perfil digno de ocupar espaço ainda vago na grande mitopoética brasileira em torno de Glauber Rocha. Não justifica a pretensiosa frase que encerra o filme – “esta é a história do menino...” –, mesmo porque nenhum documentário pode almejar ser “a” história definitiva de alguma coisa. Mas é “uma” história e tanto.





# GLAUBER, O FILME – LABIRINTO DO BRASIL

Brasil, 2003

Direção e montagem: Silvio Tendler

Roteiro: Silvio Tendler, com consultoria de Orlando Senna

Fotografia: Fernando Duarte e Walter Carvalho (imagens históricas)

Música: Eduardo Camenietzki

Duração: 100 minutos



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