Mel Gibson realmente cometeu um pecado com seu A Paixão de Cristo, e este nada tem a ver com anti-semitismo ou pregações fanáticas. Pelo contrário. A culpa _ força que assume proporções pantagruélicas, mas que em momento fica algum sufocante no longa _ não é dirigida a este ou aquele. Ela é qualificada sempre na primeira pessoa do plural no roteiro escrito pelo ator-cineasta em dobradinha com Benedict Fitzgerald. O crime do filme é outro. E suas conseqüências não deixam seqüelas desastrosas no olhar, no peito ou na alma dos espectadores. Afeta apenas as políticas discursivas que regem o presente.
Encurtando o negócio: o "pecado" de Gibson em A Paixão é mostrar a fraqueza da civilização contemporânea, sua pobreza de valores, de autoconfiança. Afinal, não há, pelo menos não segundo Bertolt Brecht, o homem que reinventou a noção moderna de espetáculo, pobreza maior para um povo do que necessitar de heróis. E o que é Jesus Cristo senão o cruzado de manto rubro, coroa de espinhos e o superpoder do amor capaz de redimir as infrações mais perversas de seus irmãos?
Primeiro filme do século 21 a suscitar uma polêmica realmente monumental, digna de fazer ferver os ânimos de aristocratas, nobres e plebeus num mundo sem senso revolucionário aparente, A Paixão de Cristo causou toda essa grita exatamente por ousar (querer) ser uma prece desesperada pelo heroísmo, avaliando a dimensão do sacrifício, da entrega em nome do outro. Imortalizado em sucessos como Máquina Mortífera como o maior kamikaze dos vigilantes do cinema-pancadaria, Gibson apenas reproduziu na tela grande na figura de um monolito consagrado (e universalizado pela máquina da Igreja) a mítica sensação que seus personagens fizeram milhões de pessoas viver. Ou seja, a sensação de ser o redentor. Mas não um redentor cândido, com códigos de boa conduta e cabelinho gomalinado.
Seus heróis eram todos demasiadamente imperfeitos. Maculados pela dor. Martin Riggs, de Máquina, era um fumante inverterado, massacrado pela sombra da morte da mulher e da negligência à relação em nome da devoção ao trabalho. Seu louco Max, arauto guerreiro de um futuro on the road, tinha a total incapacidade de fazer-se mais um numa comunidade que o amava. E William Wallace também não era dos mais pudicos, já que seu sonho rebelde de fazer da Escócia uma terra livre era mais um revanchismo pessoal do que uma bandeira política.
Daí surge um Cristo Medieval. Entre o ontem da Antiguidade romana e o amanhã da Modernidade avassaladora do progresso antropocêntrico. Seu Jesus é o Jesus do Evangelho. Portanto, o Jesus heróico de uma narrativa literária que comunga, em certo espectro das metanarrativas de outrora e do léxico fantástico das narrativas de cavalaria. Reis mortos, reis postos, mas seu JC venceu a morte e fez-se modo-modelo de todo um povo, de todo um credo na força da palavra: "Amai Deus sobre todas as coisas. Amai ao próximo como a ti mesmo".
É nas lentes do diretor nova-iorquino que cresceu e se fez estrela na Austrália que repousa a chance de emprestar a cinética (e a cosmética do celulóide) ao Deus de carne e osso. Realmente, Pasolini e Nicholas Ray já o haviam transposto para a tela grande antes atendendo ao clamor de sua época. Mas não se pode esquecer que O Rei dos Reis (1961), de Ray, surgiu na era bicho-grilo do love and peace. E o diretor, numa levada pacifista, retratou o filho do Homem como portador da compaixão, da união, da partilha.
Poeta de versos prostitutos, vendidos liricamente à beleza de causas diversas como o marxismo, a liberdade sexual, a renovação político-cultural de uma pátria tão decadente como a Itália do pós-guerra, fez seu O Evangelho Segundo São Mateus em meio à efervescência de 1964. Não admira-se que seu Cristo seja o pastor de uma filosofia congregadora, onde todos comem do mesmo pão, bebem do mesmo vinho, unidos numa "social-democracia" quase utópica de piedade e respeito mútuo.
Mais tarde, Scorsese com seu A Última Tentação de Cristo (1988) responderia com uma interpretação nada ortodoxa da Sagrada Escritura à assepsia de uma era que tremia diante da explosão do mal chamado Aids.
Mas e A Paixão de Cristo? Ora, ela não é outra coisa senão uma reação a um tempo onde se testemunha uma cidade como Madri ir pelos ares. Ou pior: a cena indelével de aviões cheios de gente serem arremessados contra torres para irritar o César da Roma contemporânea. E há ainda, também num primeiro e horrível plano, os garotos que andam por guetos e morros trocando bolas e piões por fuzis AR-15 e pistolas 9mm, em nome da ditadura da cocaína. Num universo assim, um cenário para Caligari nenhum botar defeito, como atirar pedras em Mel Gibson?
Seu filme é radicalmente coerente à proposta de retratar com todo o realismo o martírio a que foi submetido um profeta com fama de ser perfeito. E essa abordagem foi adotada por força das circunstâncias que estão nas ruas, nos jornais, no cinema de Lars von Trier. A violência do filme não é propaganda promocional. É a língua capaz de traduzir com mais perfeição a agonia de se viver a falta de discursos éticos, de projetos de novas (ou caducas) revoluções.
Tecnicamente falando, o filme de Gibson é exemplar, caminhando para uma síntese estética de rara harmonia entre forma e conteúdo. Como não é bobo, o cineasta se armou bem. Recuperou a via-crúcis do nazareno amparado na criatividade de um diretor de fotografia habilidoso, Caleb Deschanel, de Muito Além do Jardim (1979) e Os Eleitos (1983), que usa a luz do pintor Caravaggio como referência primeira, de uma alegoria de dor que torna-se barroca num piscar de olhos. A cenografia de Francesco Frigeri, desenhista de produção, só colabora para isso, com riqueza de detalhes na reconstituição espaço-temporal.
Ao elenco, não há o que se reclamar. Sobretudo diante da performance segura de Hristo Naumov Shopov, que aproveita cada segundo de sua participação em cena para compor um Pilatos humano, que fraqueja diante de uma multidão furiosa. O Cristo de Jim Caviezel também merece ser destacado, por uma interpretação vigorosa, ainda que tradicionalíssima, fechada a inovações.
O filme é, no somatório de prós e contras, um grandioso trabalho de quixote, que só assusta gente que passou as últimas décadas em Plutão, onde o índice de criminalidade deve ser –10. Faz pensar, antes de botar público para correr. O que é, para a maioria dos queixosos, seu delito mais grave. Amém!
# A PAIXÃO DE CRISTO (The Passion Of The Christ)
EUA, 2004
Direção: MEL GIBSON
Roteiro: BENEDICT FITZGERALD E MEL GIBSON
Produção: BRUCE DAVEY, MEL GIBSON, STEPHEN MCEVEETY, ENZO SISTI
Fotografia: CALEB DESCHANEL
Montagem: JOHN WRIGHT
Música: JOHN DEBNEY
Elenco: JIM CAVIEZEL, MAIA MORGENSTERN, MONICA BELLUCCI, HRISTO SHOPOV, MATTIA SBRAGIA
Duração: 127 min.
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