Muitas formas de sentimento podem mover um documentário. Pode ser a indignação política, como em A Batalha do Chile, de Patricio Guzmán. Pode ser uma curiosidade mórbida, como em Na Captura dos Friedman, ora em cartaz no Brasil. Ou o desejo de reparar uma injustiça, como em The Thin Blue Line, de Errol Morris. Uma relação de amor e ódio gerou o documentário de Werner Herzog sobre o ator Klaus Kinsky. No fervor personalista do fascismo germinou O Triunfo da Vontade.
No Brasil, grande parte da produção documental é movida pela afetividade. Exemplares recentes de perfis musicais, como Nelson Freire, de João Moreira Salles, e Paulinho da Viola – Meu Tempo É Hoje, de Izabel Jaguaribe, trabalham nessa chave da estima e do elogio ao artista retratado. Aliás, numa apuração recente do festival É Tudo Verdade entre cineastas, críticos e pesquisadores, esses dois filmes integram a lista dos dez melhores documentários musicais já feitos no Brasil. Entre os dez, nada menos que sete afinam-se pelo diapasão da afetividade (veja a relação completa no final). Somente Bethania Bem de Perto, A Voz e o Vazio: A Vez de Vassourinha – os mais experimentais – e o show-reportagem Doces Bárbaros escapam à ótica da celebração.
Nelson Pereira dos Santos é um documentarista ocasional que, ao ingressar nessa seara, parece estar sempre entrando na casa de amigos queridos. Seu recente curta Meu Compadre Zé Ketti era pura homenagem de fundo de quintal (ok, de sala e cozinha). Raízes do Brasil, uma Cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda, seu primeiro longa inteiramente documental, é uma espécie de sarau familiar, transbordante de amor pelo biografado.
Na primeira parte, as histórias da intimidade do “papyotto” (como seus netos o chamavam) desfilam ao sabor das memórias de cada um, minimamente organizadas pela montagem em função de um roteiro sentimental. Dali sai o perfil do intelectual imerso nos livros, amante de um bom baseado, um tanto voyeur, supersticioso, um boêmio de pijamas... Ou, no dizer do amigo Antonio Candido, “um erudito inclinado à molecagem”.
Antonio Candido e Paulo Vanzolini são os únicos “intrusos” nesse típico assunto de família. O primeiro ato começa e termina com grandes reuniões familiares, que de alguma maneira sintetizam o método do documentário: a alternância e a continuidade dos depoimentos entre essas duas extremidades estendem virtualmente a atmosfera de encontro. O “elenco” é de sonho para qualquer documentarista. O carisma de “Serjão” (1902-1982), que não é menor na viúva Maria Amélia, encontra eco nos filhos Chico, Cristina, Ana, Miúcha, Sérgio, Maria do Carmo e Álvaro. E ressoa nos netos Silvia, Zeca e Bebel Gilberto. Cada qual tem uma recordação curiosa, uma dedicatória especial na folha de rosto de um livro (em alguns casos, feitas antes mesmo do nascimento).
O filme vai recolhendo esses cacos de lembranças, sem muita preocupação de transcendê-los para uma análise da obra do historiador ou mesmo repercuti-los no interior do grupo familiar. É o caso da inconfidência, feita por Antonio Candido, de que Sérgio, em época de limitações financeiras, comprava livros secretamente e contava com a cumplicidade de uma empregada para introduzi-los em casa às escondidas da mulher. Quem espera conhecer a reação de Dona Maria Amélia a essa revelação fica a ver navios.
Em sua vinculação doméstica, Raízes do Brasil avizinha-se de um famoso conceito criado por Sérgio Buarque de Holanda no livro homônimo, o do “homem cordial” – aquele que baseia sua vida de cidadão nos laços de amizade e intimidade. Nelson Pereira dos Santos personifica de certa maneira os aspectos positivos do brasileiro cordial, pautando-se por uma utilização generosa do instrumental do documentário, inteiramente fundada na simpatia.
O que isso tem de revelador e de extremamente agradável na primeira parte fica um pouco comprometido na segunda, quando os fatos da vida pública de Sérgio são enumerados com base numa cronologia deixada por ele próprio, a pedido de Francisco de Assis Barbosa. Aqui o filme sofre da camisa-de-força cronológica, numa estrutura um tanto burocrática onde os episódios se sucedem sem muitas nuanças, como se todos se equivalessem em importância. Apesar dos comentários de familiares e da inserção de trechos da obra lidos com graça e sentido por Silvia Buarque, a linearidade acaba se sobrepujando às emoções da História e ao brilho das idéias.
Cabe reconhecer a competente pesquisa de imagens de Antonio Venancio, que localizou uma iconografia extremamente detalhada e perfeitamente ajustada a cada época. A persistente ilustração dos personagens citados com fotos na idade correspondente é façanha só obtida com enorme dedicação. Nesse quadro, surpreende a parca disponibilidade de imagens de Sérgio em movimento.
O documentário apresenta-se como o “percurso afetivo e histórico” do personagem. Não existiu, portanto, a pretensão de um retrato propriamente intelectual desse grande pensador brasileiro. À parte a leitura de alguns textos, sua importância e influência só são claramente dimensionados num depoimento final de Antonio Candido. Pode parecer pouco. Mas, ao mergulhar cordialmente na factualidade do homem, o filme instiga ao conhecimento de sua obra. A aventura pode começar agora mesmo, através do magnífico site que a Unicamp construiu em torno dele, há dois anos, no endereço www.unicamp.br/siarq/sbh.
# RAÍZES DO BRASIL – Uma Cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda
Brasil, 2004
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos e Miúcha
Fotografia: Reynaldo Zangrandi
Edição: Alexandre Saggese
Pesquisa: Antonio Venancio
Leitura de textos: Silvia Buarque e Zeca Buarque
Produção executiva: Márcia Pereira dos Santos e Maurício Andrade Ramos
Duração: 2 partes de 74 minutos
OS DEZ MELHORES DOCUMENTÁRIOS MUSICAIS BRASILEIROS
Consulta feita pelo festival É Tudo Verdade
A Voz e o Vazio: a Vez de Vassourinha, de Carlos Adriano (SP, 1998)
Bethania Bem de Perto – A Propósito de um Show, de Eduardo Escorel e Júlio Bressane (RJ, 1966)
Carmen Miranda, Bananas is My Business, de Helena Solberg (RJ, 1994)
Nelson Cavaquinho, de Leon Hirszman (RJ, 1969)
Nelson Freire, de João Moreira Salles (RJ, 2003)
Nelson Sargento, de Estevão Ciavatta Pantoja (RJ, 1997)
Doces Bárbaros, de Jom Tob Azulay (RJ, 1976)
Paulinho da Viola - Meu Tempo é Hoje, de Izabel Jaguaribe (RJ, 2003)
Samba Riachão, de Jorge Alfredo (BA, 2001)
Tim Maia, de Flávio Tambellini (RJ, 1997)